Chegou a ter curso a ideia de que a actividade da polícia política se tinha tornado, no período marcelista, bem menos relevante do que antes. Numa das versões, retomada em publicação recente, pertenceria ao próprio Marcelo Caetano o mérito de reduzir o seu papel e até de o reconduzir à lei – e esse seria até um facto gerador de insatisfação em sectores do regime e reiteradas queixas (“não nos deixam trabalhar!”).
A partir de factos vividos, e sem qualquer aura de excepcionalidade, devo depor em sentido oposto – limitando-me, para simplificar, à escolha de um facto por ano.
De 69, basta lembrar que, um ano após a chegada de Caetano, sob legislação acabada de redigir, uma informação com a chancela da Pide bastava para “julgar inelegível” um candidato às legislativas (Leiria, Lisboa, Santarém, Braga).
Em 70 (18 fev.) um grupo de 5 agentes da Pide, recém-redenominada DGS, efectuando uma busca sem qualquer mandado em instalações duma associação de estudantes, espancava alguns dos presentes – fui um deles – que contestavam a legalidade da operação.
Nos anos de Caetano (68-74), a polícia política efectuou nada menos do que 1891 prisões, aplicando os métodos torcionários do período antecedente, com recurso sistemático à tortura do sono e da “estátua”, impossibilidade de recurso a advogado, incomunicabilidade prolongada, ausência de controlo por qualquer tribunal. Estive detido em Caxias em 71, de 8 de abril a 20 de maio, e pude comprová-lo. E registo que, além do chefe do governo, ministro do Interior e director da Pide/DGS eram os mesmos que estavam em cena em 69.
A vigilância e o recurso à infiltração nunca abrandaram. Em 72, num usual jantar do 5 de outubro, em Leiria, no Hotel Central, fiz uma intervenção que foi objecto de um relatório pormenorizado e até de fotografia: encontram-se ambos hoje na Torre do Tombo.
Prosseguiu, até ao último dia, uma das funções asseguradas desde os anos 30: o impedimento da entrada de eventuais opositores na função pública ( e até para lá dela, como no ensino).
Candidatei-me, a certa altura, à carreira diplomática. Num modelo clássico da Papelaria Fernandes, com um espaço dedicado para o efeito a cada um dos concorrentes, a polícia política apôs à frente do meu nome: “Não oferece garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado,9/10/1972”. A candidatura desapareceu do concurso sem direito a notificação – e só muitos anos depois veria o documento.
No interior das Forças Armadas, ainda em julho de 73 eram atribuídas prontas consequências a uma simples comunicação da Pide/DGS ( incluindo expulsão do curso de oficiais milicianos e transferência para companhia disciplinar em colónia, para prestação de serviço militar na guerra “em modo punitivo”). E posso testemunhar que até abril de 74 continuou, sem quebra, a intercepção – e às vezes o confisco – de correspondência expedida do exterior, de toda a natureza. Há provas disponíveis.
“Não nos deixam trabalhar”?!
Num inquérito a cidadãos que viveram no último período da ditadura, verificou-se que, para 70%, “desde que não se envolvessem na política, podiam ter uma vida perfeitamente normal e não tinham que se preocupar com a Pide/DGS”. E mais de 3/4 dos inquiridos declarou que tinha, nessa altura, pouco ou nenhum interesse por política”.
Não há que interpretar nada disso como diminuição da relevância, para o regime, da polícia política – mas, pelo contrário, como um resultado assegurado pela sua ininterrupta actividade.