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Carta aberta ao autor do projeto de alteração para o edifício do terminal de Leiria da Rodoviária

“Em determinados momentos (principalmente quando num lugar onde toda a vida passámos), uma alteração revela-nos o peso da ausência do que era, e ficamos a saber que, afinal, o que se alterou tinha muito mais significado do que imaginávamos”.

 

 

Mais do que manifestar a total oposição à proposta de alteração para o Terminal Rodoviário de Leira, da Av. Heróis de Angola, que por si só não é suficiente para levar a expor uma opinião, pois, infelizmente, não haveria tempo nem saúde que resistisse se tivéssemos este grau de envolvimento para cada ação levada a cabo sobre o tecido das nossas cidades tomada sem o mínimo sentido de continuidade, um total alheamento do contexto cultural, e tendo como pontos de partida, por um lado, a nefasta e ilusória necessidade mediática de “inovar” e, por outro, a consequente abstração formal desprovida da estreita fidelidade ao imperativo da vida real – esta sim, que atravessa diariamente teorias e concetualizações como um leito de um rio que traça o seu caminho por cima das pedras -, em que a memória, identidade e sentimento de pertença são fatores elementares para que as pessoas identifiquem o Sentido do lugar que se faz delas, geração após geração.

Venho antes partilhar a não concordância com a afirmação do autor do projeto citada no REGIÃO DE LEIRIA quando diz que: “Das duas uma: ou reabilitamos o edifício original ou lhe damos uma renovação de imagem, são dois extremos, não há um intermédio”.

Seja no exercício da prática da arquitetura, seja em qualquer outra questão que diga respeito a esta coisa que é a vida, esta afirmação não é correta. Há sempre intermédio. Está-se a confundir Reabilitação e Restauro. No que à reabilitação concerne, apesar da imprescindível consideração pelo carácter e pelo significado da estrutura na qual se pretende intervir, há sempre lugar para a adequação.

Determinados edifícios são de uma generosidade imensa… Repare-se como se tem agido por esta nossa Europa fora sobre o património edificado, incluindo património industrial, que se deparou subitamente integrado no centro dos tecidos urbanos, fruto do rápido crescimento das cidades durante o último século, e de como muitas destas estruturas, mantidas por se ter a plena consciência que nada “novo” seria melhor, viram potenciado o seu carácter e a sua presença, agraciando o desenho urbano de matizes de períodos distintos e de memórias, no fundo, de História e de Património Cultural. Estruturas como estas permitem, com um altruísmo comovente, a adaptação a novos usos, a novos programas, a novas funções; mantêm-se firmes pois são edificações de qualidade; resistem e auxiliam-nos, não só a conhecer a evolução do nosso lugar, mas principalmente, a resistirmos também, a perscrutar o sentido do mundo que paralelamente à natureza o homem vai gerando.

E é neste contexto que a afirmação incorreta de que “não há um intermédio” é perniciosa pois está a ignorar um espaço de ação onde reside a sensatez relativa à coisa pública. A sociedade e o lugar são unos! Enquanto é nosso dever compreender e preservar o que de melhor existe deixado pelo passado desprendidos de nostalgia ingénua e, em simultâneo, empreender com abertura a mudança fundamentada em conhecimento e sentido, uma Terceira Via – essa que se afirma não ter lugar –, na qual muitas vezes se alcança o feito de nos desprendermos de interesses particulares e visões individualistas –, é exatamente onde a vontade, o bem-comum, o compromisso coletivo e o sonho se encontram com as pessoas, guiando-as, fazendo-as acreditar, e defendendo-as das graves incursões ao seu modo de vida, permitindo-lhes a aspiração a um futuro melhor. Por outras palavras, vão educando a que não se contentem com “vitórias” assentes no sentimento de que outra solução poderia ter sido pior.

Se é nosso dever preservar o que de melhor existe deixado pelo passado, no que diz respeito ao caso concreto do edifício da Av. Heróis de Angola, interessa que se entenda a razão de este se incluir nesse “melhor”, agora que se tem a intenção de nele intervir. A “imagem” atual que agora se quer transformar, faz parte da identidade da cidade, do lugar para onde ela foi crescendo, onde se desenvolveu Moderna. A Arquitetura (que na sua etimologia, pelo termo arché, induz a ligação à origem das coisas), tem subjacente à sua génese a componente impulsionadora de busca de um modelo que revele essa origem e a ligue à natureza pelo intermédio da edificação. Assim, adquire um carácter de documento da visão da realidade em cada momento da história. E este edifício é uma ilustração de uma visão que existiu do mundo, do país, da cidade. É-o não singularmente, muito pelo contrário; é-o precisamente porque a linguagem que exibe consiste no desenvolvimento de soluções elementares que se tornaram estáveis e duradouras culturalmente, porque eram compreendidas e resistiam a oscilações de gosto ou de moda, tornando-se familiares da verdade das pessoas. Assim, a linguagem repete-se num vocabulário que se vai enriquecendo dentro de um sistema de valores concretos. E é essa repetição que podemos observar em muitos dos edifícios da avenida, principalmente de frente do terminal – na escala, nas proporções, no desenho de elementos, de soluções construtivas, na ornamentação simples mas presente, na marcação de ritmos…

Quando assim acontece, a arquitetura faz o que tem que fazer: interligar-se ao ser humano, suportar-lhe o modo de vida e simbolizar o seu tempo.

Traduzidos para a prática do exercício da arquitetura como um conjunto de convenções, estes valores dão origem a um arquétipo ligado à cultura da época, que brota genuinamente da sociedade e impede obstinações individualistas. O arquétipo expressa o ofício do desenho de projecto na sua essência, e alterar este edifício da Av. Heróis de Angola é apagar a arquitetura que floresceu do passado retendo uma autonomia e continuidade intrínseca ao próprio ofício – a ligação à realidade.

É de banalidade inteligente que é constituído a maioria do tecido urbano da cidade europeia, onde, na autenticidade dos edifícios, lemos as épocas que construíram cada conjunto de ruas, quarteirões, bairros. Espelhadas nas fachadas dos edifícios, juntamente à inscrição das suas datas, estão também os seus humores, os seus costumes, os segredos dos seus tempos. O que é perene na cidade é essa banalidade inteligente nas soluções adotadas, com as quais convivemos quase sem dar conta porque estas não gritam nem querem ser diferentes. Em determinados momentos (principalmente quando num lugar onde toda a vida passámos), uma alteração revela-nos o peso da ausência do que era, e ficamos a saber que, afinal, o que se alterou tinha muito mais significado do que imaginávamos. Isto não é pensamento nostálgico, é um facto.

Atenciosamente, com esperança que não se tomem estas palavras como oposição à intenção projetada – que é manifesta –, mas antes como uma crença que o que ali existe não se devia perder.