Durante séculos marcaram o ritmo da cidade, assinalando horas (e as meias e os quartos), chamando para festas, funerais, catequese e outros actos religiosos. Alertavam até para incêndios – e existia uma tabela de toques para saber se o fogo era na cidade ou redondezas. Hoje, os sinos da Sé de Leiria perderam boa parte da vitalidade e da importância, mas tudo pode mudar em 2012: no âmbito da Rota das Catedrais, a Torre da Sé de Leiria, guardiã dos sinos, vai ser recuperada e requalificada para contar todas as suas histórias.
Desde logo a excentricidade de estar afastada da Sé. “Os historiadores inclinam-se para o facto de ter sido elevada para que, do Arrabalde da Ponte, se ouvissem os sinos. Sendo isto verdade ou não, a questão é que também há, do ponto de vista visual, a marca do bispo, com o seu brasão. Aparece como uma espécie de obelisco do bispo D. Miguel Bulhões e Sousa, que a mandou construir em 1770”, explica o representante dos cabidos das sés na Rota das Catedrais, Marco Daniel Duarte.
A caminho do Castelo, a Torre destaca-se na zona histórica. Com aquela “peça de arquitectura notável”, frisa, “a Igreja Católica marcou, no século XVIII, a paisagem de Leiria para todo o sempre”. Esse facto, potenciado pela presença da casa do sineiro, por cima do famoso arco, permite várias possibilidades.
No projecto da Rota das Catedrais está previsto o restauro da Torre – cuja estrutura apresenta debilidades – e da casa, com a instalação de um projecto museológico que “faça entender as várias funções daquele edifício” e explore “uma série de possibilidades”.
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“Uma delas é perceber que a Igreja Católica no século XVIII marcou a paisagem de Leiria para todo o sempre”, realça, caracterizando a Torre enquanto “peça arquitectónica notável, bem traçada e com a particularidade de ter acoplada a si a casa que serviu ao sineiro”.
Além da marca do bispo e do controlo temporal, o edifício serviu também de prisão. “Por isso ainda se diz em Leiria a expressão ‘Vais ouvir os sinos da Sé”, conta Marco Duarte. Integra ainda um pedaço de muralha do Castelo e ofereceu música à cidade durante séculos – até há pouco funcionou ali um curso de carrilhão. Até Eça de Queirós deu protagonismo à Torre da Sé, incluindo-a n’“O Crime do Padre Amaro”.
Apesar da polémica em torno do romance, ele vai constar na museologia da Torre. A Igreja não vai ignorar a ligação literária ao espaço: “Não é um problema porque a Igreja não assume a veracidade da história contada por Eça de Queirós, mas assume que se serviu da paisagem urbana de Leiria para construir e o seu romance e não há qualquer dificuldade em perceber isso”.
Quanto à música, a intenção é que o protocolo entre o Cabido da Sé e a SAMP, que levou o curso de carrilhonista até à Torre da Sé, seja retomado após a intervenção. “Não sabemos se há risco, mas há receio e há que haver alguma ponderação. Este é um compasso de espera até que se reactive”, explica Marco Duarte.
“A diocese está a esforçar-se para devolver aquele edifício à cidade, para ser usufruído culturalmente, em visitas de estudo na lógica de evangelização da Igreja, mas também do ponto de vista cultural e histórico”. Com o protocolo que prevê a intervenção em vias de ser assinado entre a Conferência Episcopal e a Direcção Regional de Cultura, Marco Daniel Duarte espera que o projecto avance em 2012.
“Será um ponto importante a visitar por quem sobe a encosta do Castelo. É um dos itinerários turísticos mais frequentados e nada nos espanta que a Torre seja uma peça fundamental naquele conjunto”, juntamente com a Igreja de S. Pedro, m|i|mo e Castelo, assumindo-se como uma “visita sensorial com compente multimédia”.
Como será a visita
No futuro, um visitante entrará na Torre da Sé pelo largo que serve de estacionamento junto à PSP. Na Casa do Sineiro haverá uma zona de recepção e uma sala com conteúdos sobre a história da Diocese de Leiria-Fátima e também uma perspectiva sobre o tempo da Igreja e o tempo dos homens, revela Marco Daniel Duarte.
A visita prosseguirá pela zona de pêndulos do relógio, que utilizam todo fosso da torre para a sua função.
O percurso contemplará ainda informação sobre a muralha do Castelo de Leiria, sobre a qual foi construída a Torre da Sé.
Depois, a visita continuará pela escada, contornando o mecanismo do relógio, também ele uma preciosidade patrimonial. É por aí que se acede ao carrilhão histórico, ainda utilizado para assinalar as horas, e a um outro, mais pequeno, que tem servido para as aulas da SAMP.
História
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Estaria previsto no projecto inicial da Sé de Leiria, construída em 1550, uma torre sineira. “Era do lado esquerdo de quem está virado para a fachada da Sé e chegou a ser principiada”, explica o presidente do Cabido, Luciano Cristino. “Mas depois foi abandonada e bem, para vir para aqui”, contou, na visita guiada à Torre da Sé.
“Depois da construção da Sé”, continua Luciano Cristino, “foi considerado que ali os sinos da torre – para chamar para os actos e etc – quanto à cidade propriamente dita, não haveria problema, mas quanto a esta parte que se estava a estender para o bairro de Santiago e do Arrabalde da Ponte não se ouvia bem”.
Foi então construída uma torre no local actual, mais elevado que a catedral, “mas mais modesta” que o edifício que perdura até hoje. Luciano Cristino explica que há quem diga que essa seria provisória, “mas não se compreende que assim fosse”. Certo é que não deveria ser muito sólida, porque o terramoto de 1755 terá afectado a estrutura:
“Esperaram-se mais alguns anos até que o Bispo D. Miguel Bulhões e Sousa, que tem por aí muitas obras espalhadas, empreendeu esta construção, e nós podemos ver não só o brasão dele mas, entre o relógio e os sinos, a data da construção: 1770”.
A Torre da Sé conquistou então um protagonismo na paisagem da cidade de Leiria que ainda hoje é evidente, assumindo um papel que o presente projecto pretende documentar.
Ao lado, e vital para o correcto funcionamento da Torre, está a casa do sineiro, que foi utilizada até à década de 70 do século passado.
“Primeiro houve sineiros, depois sineiras, e o último sacristão da Sé, que viveu aqui, o senhor António Caetano de Lima, era também sineiro. Esteve aqui até aos anos 70 ou 80”. Mais tarde, conta Luciano Cristino, foi “o senhor cónego Rosa, organista da Sé e que gostava muito de música”, que tocava os sinos. “Este carrilhão fazia as delícias dele”.
O presidente do Cabido da Sé chegou a ouvir modinhas populares tocadas pelos sinos e, muito antes, depois da implantação da República, há informações de que “foi dito ao sineiro para tocar ‘A Portuguesa’ e outras melodias republicanas”.
Mais habitual era os sinos chamarem “para a catequese, para os actos, para o Mês de Maria” ou tocarem “sinais mais solenes pelo Bispo e pelo Papa”, um hábito que terminou “pouco antes da transferência do cónego José de Oliveira Rosa para Fátima. Foi com pena para todos, porque ele marcava a cidade”.
Luciano Cristino lembra também os sinais dos sinos para os fogos. “Na Igreja do Espírito Santo havia uma tabela com os sinais, para saber se o fogo era na cidade ou nas redondezas”.
Com este projecto de requalificação e musealização integrado na Rota das Catedrais, há a esperança de recuperar algumas dessas marcas sonoras que constróem a memória de Leiria mas que desapareceram do quotidiano da cidade. Luciano Cristino acredita ser possível voltar a fazer ouvir os sinos: “Agora, alguns desses sons vão poder regressar à cidade”.
Manuel Leiria
manuel.leiria@regiaodeleiria.pt
Sérgio Claro (fotografia)
Ega disse:
Excelente peça de jornalismo: bem escrita e bem estruturada, sobre um tema sempre interessante, com informação bastante cuidada e completa, e muito bem ilustrada (com as fotografias e o relato em primeira pessoa). Dou os parabéns ao autor por este trabalho.