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“Esta crise não representa o fim do mundo”

Em entrevista, D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, aponta o dedo ao capitalismo sem regras e traça o caminho para o futuro. Na diocese, aposta em estreitar os laços com a comunidade.

D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima aponta o dedo ao capitalismo sem regras e traça o caminho para o futuro: mudar de paradigma. Na diocese, sublinha a aposta em estreitar os laços com a comunidade.

 

D. António Marto. Foto: Joaquim Dâmaso

Licenciou-se na década de 70 com uma tese sobre a penitência. Anos mais tarde doutorou-se com a defesa de uma tese sobre “esperança cristã”. Ora este facto dá-lhe especial competência para analisar para o momento atual do país. Acha que esta dose de penitência é adequada? Podemos ter esperança?

Eu não sou um comentador político, nem um analista económico…

Mas é um observador atento…

Um observador que fala da situação na perspetiva de humanismo cristão, no ponto de vista cultural e ético. E não queria extravasar este plano. Como todos experimentamos, estamos debaixo de uma crise que não é apenas económico-financeira, igualmente com repercussões sociais, mas é sobretudo uma crise de ordem cultural e ética. Vivemo-la numa situação de emergência nacional, em circunstâncias inéditas: quer pelas grandes transformações económico-financeiras e politicas que o mundo está a atravessar, quer pela nossa dependência externa muito grande. Esta crise não é apenas conjuntural, é mesmo do sistema. Não representa o fim do mundo, mas representa o fim de um modelo do mundo: um modelo económico, debaixo do qual está, neste momento, o capitalismo financeiro especulativo, bolsista e virtual, sem regras. Nesse sentido diria que é um capitalismo selvagem e que comanda a agenda económica e política sem travões. De tal maneira que as medidas que são apropriadas de manhã, à noite ou no dia seguinte deixam de ter validade. Portanto, requer uma mudança paradigmática no modelo de desenvolvimento não só em Portugal como em todo o mundo. Verificamos a impotência dos políticos em colocar uma regulação financeira e depois as consequências graves que se manifestam no desemprego, em primeiro lugar, que é a maior chaga social neste momento. Depois há situações de carência e pobreza que se alargam cada vez mais, incluindo os desempregados, e as repercussões dessa situação no aspeto social, educativo e da própria saúde. Requerer-se, neste aspeto, a conjugação do esforço de todos, dos governantes, dos responsáveis sociais e políticos que devem superar divergências legítimas em situação normal, mas a emergência nacional requer que se coloque o interesse do país acima dos interesses particulares.

As visitas pastorais que tem efetuado revelaram-lhe uma diocese a trabalhar para atenuar os sintomas da crise?

Toda a Igreja em Portugal está empenhada em ajudar as pessoas e as famílias neste momento de crise. Naturalmente que a Igreja não se pode substituir à ação própria do Estado no aspeto do empenho estrutural em modificar a situação económica e financeira. Mas a Igreja tem uma obra social de proximidade que abrange o país, a nível nacional com a Cáritas Nacional e o Fundo Social Solidário nos casos mais difíceis, seja a nível diocesano com a Cáritas Diocesana, seja a nível paroquial, mesmo nas paróquias mais recônditas, escondidas nas serras. Com os grupos sócio caritativos, todos estão mobilizados. Na diocese também para fazer frente a situações de mais carência, para ajudar as pessoas a viver de maneira minimamente digna no meio da crise. O ano passado sentimos um aumento de pedidos de apoio na Cáritas Diocesana, na ordem dos 60% em relação a anos anteriores: damos apoio a 850 famílias, aproximadamente 2.400 pessoas. Este ano, nos primeiros três meses, já temos 350 famílias e 750 pessoas aproximadamente [que pediram apoio]. Temos encontrado uma solidariedade muito grande do povo. É algo fenomenal e fantástico: o nosso povo sente esta crise de forma solidária e partilha, até à data felizmente não têm faltado recursos financeiros para dar apoio pagamentos de renda de casa, da água, eletricidade, medicação, alimentação e ajudar a pagar dividas. E depois também a tomar iniciativas de cidadania proativa em ordem a sermos capazes de superar o mal-estar da situação de desemprego e encontrar ocupação para não cair na depressão.

São tempos exigentes para a vocação social da Igreja?

Ela é posta à prova e manifesta tudo aquilo por que é chamada a dar. Chamamos a isto a caridade. Não no sentido pejorativo da esmola, mas no espírito positivo da partilha solidária com quem precisa. É o modo mais belo de dizer a nossa fé.

Essa afirmação da solidariedade cristã é o que retira de principal deste seu périplo pelas paróquias?

É um dos aspetos principais, mas não se traduz só nisso. A visita pastoral faz parte da missão do bispo. Em primeiro lugar, trata-se do bispo conhecer o seu povo e o povo conhecer o seu bispo. Sobretudo fazer compreender que o bispo faz parte da comunidade, do povo de Deus. Não é uma figura mítica acima de todos, mas com o seu povo, que partilha as alegrias e dificuldades do seu povo. E isso é algo de belo, para ambas as partes. Para o bispo que se sente acolhido e o povo que sente um bispo próximo e solidário. Depois, naturalmente, este é o aspeto mais visível. Depois dentro dessa comunhão entre bispo e comunidades – e cada uma tem o seu rosto e os seus problemas, há uma variedade muito grande -, vem o aspeto de despertar a fé adormecida, do aproximar de quem às vezes se afastou, de estabelecer dialogo mesmo com os não crentes. E o fazer também sentir-se uma Igreja viva, com membros vivos que pertencem à família da Igreja e se sentem corresponsáveis pela sua vida. É uma Igreja que dá uma imagem de fraternidade, e o evangelho também é isto. E nessa fraternidade entra a opção preferencial pelos mais pobres, desfavorecidos e necessitados.

Foi agora conhecida a decisão de colocar um ponto final nos jornais o Mensageiro e a Voz de Domingo. Essa partilha com o povo da Igreja fica menos eficaz ou prefere-se um novo tipo de diálogo?

Essa questão não vem de agora, começou a ser discutida há 25 anos no congresso de leigos e foi retomado no Sínodo Diocesano e ficou exarado no livro do Sínodo em 2002.

É uma decisão amadurecida…

É uma questão que vem de longe. Eu cheguei e foi um dos primeiros problemas que me foi apresentado, porque se trata de uma diocese pequena, pobre e deficitária. E estes dois jornais tinham um défice muito grande e era impossível a sustentabilidade económica. E fomos para um novo projeto. Consultei os órgãos diocesanos: o Conselho Presbiterial, o Conselho Pastoral Diocesano e o Conselho Económico Diocesano e todos foram de acordo em que avançássemos para um novo projeto que é um novo órgão resultante da fusão dos dois. Para ter mais qualidade, sustentabilidade económica e para conjugar com os novos meios de comunicação como é o caso do site da diocese. É um novo projeto que assume a riqueza dos outros dois e constitui e corresponde a uma necessidade da diocese. Resultará também numa melhor qualidade da comunicação e deixamos de parte o aspeto regionalista que não é tão próprio da imprensa eclesial. Não quer dizer que será um projeto fechado, de sacristia: olha também para os problemas culturais e de sociedade na perspetiva de humanismo cristão. Mas não vai dar as notícias que são dadas pelos jornais locais.

Já tem alguma perspetiva do horizonte temporal para o arranque do projeto?

Em princípio, esperamos que possa aparecer na Festa da Fé no final do mês de maio.

Cumpriram-se dois meses sobre o anúncio de resignação de Bento XVI. O seu ex-professor fez bem em resignar?

Fez. Para mim não foi uma surpresa total. Não foi algo de inesperado, ele já o tinha dito no livro-entrevista ‘Luz do Mundo’, onde dizia que se o Papa não sentisse forças e bem-estar físico e ânimo para desempenhar bem o ministério, tinha o direito, e por vezes o dever, de renunciar ao exercício do ministério. Quando li aquilo, pensei imediatamente que iria fazer isso. Não pensei que acontecesse tão rápido. Ele tinha proclamado o ano da fé e pensei que ia levar o ano da fé até ao fim e no final do ano da fé estava à espera, porque era visível um enfraquecimento das forças. E quem o conhecia de perto sabia que ele era um homem muito racional e de fé. Que conjugou sempre fé e razão, até nesta decisão que foi tomada por fé e com racionalidade. Porque foi para o bem da Igreja e da fé do povo de Deus que tem novas questões e problemas e precisa de alguém com novo vigor para lhe fazer face.

A Igreja necessitava mesmo de ir buscar um novo Papa ao fim do mundo para enfrentar os desafios dos tempos presentes?

Para cada tempo, Deus envia um Papa próprio para a sua igreja. Foi assim para João XXIII, eleito aos 78 anos, e foi uma surpresa. E trouxe a surpresa do Concílio Vaticano Segundo. Depois com João Paulo II, que todos conhecemos: um Papa vindo de Leste que ajudou a uma nova reconfiguração da Europa e do Mundo. E foi também preciso este Papa de transição. Porque deixa marcas, na continuidade de João Paulo II. Chamou à essencialidade da fé e fez um trabalho de purificação da Igreja e de transparência. Cultivou o diálogo da fé e cultura, da fé e razão, da fé e a descrença. Levou em frente o diálogo religioso e ecuménico, com a autoridade magistrarial e doutrinal que pouca gente tinha para poder unir todos. Na Igreja existem divergências, muitas delas naturais, mas que quando são levadas ao extremo, provocam cismas e ele procurou unir. Depois sentiu o momento próprio para deixar o lugar a outro. E todos pensavam que o novo Papa viria de fora da Europa. O próprio catolicismo está a deslocar-se. A América do Sul é o continente onde existe o maior número de católicos, cerca de 46 por cento. Seria natural que proviesse da América Latina, África ou até da Ásia. Veio de surpresa mas pela sua apresentação e pelos seus gestos – tem falado mais por gestos que por discursos – entrou no coração do mundo.

Este primeiro mês de atividade do novo Papa surpreendeu-o?

Não é muita a surpresa. Do ponto de vista da fé não mudou nada, mas mudou o estilo e a linguagem. Diríamos que já introduziu uma pequena revolução, a revolução dos gestos que falam por si. A da simplicidade, a da proximidade e da fraternidade: estar junto dos pobres e tudo isso é uma linguagem e uma mensagem. As pessoas captam mais que sendo discurso.

O facto do Papa Francisco ter pedido ao Cardeal Patriarca de Lisboa que consagrasse o seu pontificado a Nossa Senhora de Fátima é um sinal do reconhecimento da importância de Fátima no contexto da Igreja?

Sem dúvida. Fátima hoje tem uma dimensão internacional ímpar. Que conquistou por si mesma. Não foi por propaganda, marketing ou publicidade, foi por si. É célebre a frase do Cardeal Cerejeira: não foi a Igreja que impôs Fátima, foi Fátima que se impôs à Igreja. Foi uma mensagem que veio do alto para um momento dramático da História da Humanidade nunca antes vivido: duas guerras mundiais. Uma ameaça de autodestruição da Humanidade e um anseio profundo de paz. Este Papa tem uma devoção mariana, vem da Argentina onde existe um grande Santuário a Nossa Senhora de Lujan, onde ele ia várias vezes. Em Buenos Aires, recebeu a imagem da virgem peregrina de Fátima. Achei natural que tivesse pedido isso…

Será natural que o Papa possa estar no centenário das aparições em Fátima?

Espero bem e faremos o convite a seu tempo. Não pode ser só o bispo local, tem de ser a Conferência Episcopal. Vamos ver se ainda durante este ano, porque tem de ser com antecedência.

Ainda em Fátima, nestes dias os bispos deixaram uma pista para ajudar a sair da crise: Crescei e multiplicai-vos. A demografia é parte do problema e da solução?

É verdade. Ambas as coisas. É parte do problema, porque a sustentabilidade do Estado Social depende de uma renovação de gerações de quem trabalha e faça descontos para o Estado poder ajudar pensionistas, reformados, doentes idosos, etc… É parte do problema se cai a natalidade. Será parte da solução se tivermos um pouco de ousadia e esperança de apostar na natalidade. Quer da parte das pessoas – exige uma certa generosidade e ousadia em não se deixar derrotar pela crise -, mas também da parte do Estado com apoio necessário à família e à natalidade, pois a política há vários anos tem sido anti-natalidade.

De acordo com o Censos 2011, 85% da população com mais de 15 anos no Pinhal Litoral (Leiria, Batalha, Porto de Mós, Marinha Grande, Pombal) dizia-se católica. Não obstante, a diocese conta com um Serviço de Animação Vocacional com atividades que se estendem até à internet. É um sinal de que as vocações tendem a escassear, apesar do domínio da fé Católica?

Sim. Sente-se por toda a Europa. Não é um problema só de Portugal ou da nossa diocese. E nas dioceses portuguesas, não somos a que está pior. Atualmente, um dos aspetos é a realidade da quebra da natalidade. Antigamente, as famílias tinham dois, três, quatro filhos. E as famílias tinham gosto em ter um filho padre e havia um ambiente propício e animador para as vocações. Hoje, falta à partida a matéria prima. Além disso, para surgirem as vocações é necessário um ambiente vocacional: um jardim onde se semeiam e cultivam as plantas. O ambiente cultural não é muito propício. Daí esta animação vocacional durante o mês de abril, com iniciativas para crianças, adolescentes e jovens. Depois, levar todas as comunidades a sentirem-se corresponsáveis neste aspeto de animação vocacional e de apoio às vocações e não pensarem que o bispo tem uma fábrica de padres: querem um padre e julgam que basta bater à porta do bispo. Quando cheguei aqui há seis anos e meio, tinha três estudantes de Teologia, de momento são sete e estão três para entrar. O despertar das vocações é um pouco diferente em relação ao que acontecia antigamente. Na altura, existiam seminários menores. Eram escolas ao serviço de todo o povo e muita gente teve a possibilidade que de outro modo não teria. E depois iam selecionando aqueles que chegariam até ao fim e optariam pelo sacerdócio. Hoje não temos o seminário menor, temos o chamado pré-seminário em que os adolescentes e jovens fazem os seus estudos nas escolas públicas e junto da família. São acompanhados mensalmente por uma equipa. Temos três que vão entrar no seminário maior e para o ano serão dez. É um bom crescimento, não quer dizer que cheguem todos até ao fim, mas por ora é razoável.

As funções que desempenha o Bispo D. António Marto, roubam muito tempo a António Augusto dos Santos Marto, flaviense de nascimento, prestes a fazer 66 anos?

Não é um emprego. É uma vocação e uma missão com a qual a pessoa se identifica, naturalmente, não por obrigação imposta, mas pelo ardor na fé que se traz no coração. A pessoa vive essencialmente para a sua missão. Mas não perde a sua humanidade e singularidade. A maior parte do tempo é na missão, fora, recebendo pessoas. Outras vezes é preparar as coisas: as visitas pastorais absorvem muito tempo. Por vezes era cansativo, mas por outro lado trazia a gratificação interior muito grande de encontrar o povo. Se me perguntasse o que gosto mais na vida de bispo, digo com sinceridade que são as visitas pastorais: é um encanto estar perto do seu povo, levar uma palavra de ânimo, esperança, de abertura de novos horizontes e do despertar de uma fé alegre e não um fardo de obrigações. Mas tenho de ter tempo para descansar, para visitar a família que mora em Trás-os-Montes – a minha irmã e sobrinhos – e tempo para ler e ver televisão e saber como vai o mundo e a Igreja. Há tempo para tudo, mas é preciso ter método para encontrar esse tempo.

Se acompanha a atualidade, como comenta o facto de ser apontado, frequentemente, como um possível sucessor do atual cardeal patriarca de Lisboa?

Leio isso, as pessoas também o dizem: então vai-nos deixar… Rio-me e digo que os jornalistas têm de falar nisso naturalmente e acrescento: não alimento telenovelas de nomeações eclesiásticas. Só o Espírito Santo saberá quem é que vai. Sinto-me bem aqui.

 

Carlos S. Almeida

carlos.almeida@regiaodeleiria.pt

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