Manuel Carvalho Gomes não esconde a surpresa que foi, nos primeiros encontros, ver que a maioria dos seus colegas do Internato Masculino de Leiria, se tornaram “bons profissionais, têm uma vida boa, uma boa casa e os filhos licenciados”. “Isso é qualquer coisa de extraordinário”, sublinha. Oriundos de famílias muito pobres e, em alguns casos, completamente desestruturadas, cerca de 80 rapazes do internato conseguiram fintar o destino que lhes estava traçado, graças “à obra e à luta” de um franciscano que dirigiu a casa durante quase 10 anos.
João António d’Alcaravela, natural do concelho do Sardoal, assumiu o lugar de diretor em 1960, era então um jovem frade, tinha 30 anos. “Comecei a ver o que se passava com cada um, eram tratados como um rebanho”, contou no passado sábado [22 de agosto de 2015] ao REGIÃO DE LEIRIA, durante o encontro que juntou antigos alunos no convento dos franciscanos, em Leiria, local onde, à época, funcionava o Internato Masculino. João António lidava, então, com rapazes dos 7 aos 18 anos. Recorda que treze deles não tinham calçado e 27 eram filhos de prostitutas.
Pouco a pouco, as “situações difíceis” que este franciscano encontrou no internato foram sendo atenuadas com as condições que conseguiu criar: “lutei por tudo e por todos, ia a Lisboa uma vez por semana à boleia para tratar de transformar isto um pouco”. Com a Câmara de Leiria conseguiu uma colónia de férias na praia do Pedrógão e, através de um amigo, implementou uma ementa especial do colégio militar. Chegou a ser acusado de tratar os meninos como se fossem ricos.
João António tornou-se “uma pessoa marcante” na vida destes jovens. “Aprendi a lavar os dentes porque ele me ensinou e ensinou-me como é que se assoava”, diz Carvalho Gomes. Inácio Valério conta, por sua vez, que foi com o padre João que aprendeu a comer de garfo e faca. Lembra-se ainda de ter chegado descalço ao internato e que, duas horas depois, estava calçado.
Ter mão num grupo de rapazes com estas características foi difícil. João António explica que só o conseguiu com a obra “dos rapazes pelos rapazes”, uma estrutura em que os mais velhos lideravam e se tornavam responsáveis pelos mais novos. Inclusivamente, definiam-lhes castigos e havia muitos, demasiados, na opinião dos irmãos Pedro, de Alqueidão da Serra. Fernando, o mais novo, entrou no internato com 7 anos e fugiu ao fim de cinco. “Não gostava absolutamente nada de estar aqui”, contou ao nosso jornal. Também o irmão, José, via o internato como uma prisão. “Nós fomos criados à solta”, explica, e os castigos “são coisas que nos marcaram muito, que estão dentro de nós e não podemos tirar”, refere. Inácio Valério recorda que também foi castigado, mas rapidamente justifica: “nós não éramos nenhuns santos”.
Bem acolhida entre a generalidade dos rapazes, a obra de João António nunca conseguiu convencer a entidade que tutelou o internato e, em 1966, a Junta Distrital de Leiria destituiu-o. Inconformado, levou o caso para a Justiça e ganhou a ação. Foi reconduzido como diretor dois anos depois, mas não se demorou no lugar. Os rapazes mais velhos tinham sido expulsos, com exceção de Carvalho Gomes, e o projeto educativo e social em que tanto se empenhara estava comprometido.
João António acabou por se demitir, mas não sem antes saber que, durante as inspeções, os rapazes o defendiam sem reservas, ao ponto de os inspetores lhe perguntarem: “o que é que o senhor faz a estes rapazes que eles davam a vida por si?”. João António recorda-se de ter respondido: “eu não faço nada, eles é que fazem tudo”. Hoje diz com emoção: “éramos uma família”.
Artigo publicado na edição de 27 de agosto de 2015 do REGIÃO DE LEIRIA
Patrícia Duarte
Jornalista
patricia.duarte@regiaodeleiria.pt
O “padre João” quando era diretor do Internato
Encontro de antigos alunos do Internato em 2015
João António d’Alcaravela
Inácio Valério tem a seu cargo a publicação do livro