A campanha “Mil brinquedos, Mil sorrisos”, promovida pelo Centro de Recursos para a Inclusão Digital (CRID) do Politécnico de Leiria, comemora o seu 10º aniversário esta quarta-feira, dia 28 de fevereiro.
Para assinalar a data, reproduzimos a entrevista que Célia Sousa, mentora do projeto, concedeu ao REGIÃO DE LEIRIA na primeira edição do ano. Uma edição especial, que foi dedicada quase integralmente à problemática da diferença e da inclusão, e que coordenou enquanto diretora convidada.
O que mudou com o Centro de Recursos para a Inclusão Digital (CRID)?
Chamou a atenção muito especialmente na área da comunicação ao pensar na comunicação para todos e num conjunto de tecnologias que podem ajudar as pessoas com incapacidade. Quero acreditar que fez a diferença na região porque há uma preocupação muito grande de alguns concelhos em arranjar soluções e acho que fez uma grande mudança na área da Cultura.
A campanha “Mil brinquedos, Mil sorrisos” fez mais pelas crianças com deficiência do que qualquer outra ação de sensibilização de que tenha memória?
A campanha faz dez anos e acho que fez muito mas estou num momento em que desacreditei um bocadinho da campanha. Surgiram muitas campanhas parecidas pelo país inteiro, especialmente nas instituições de ensino superior e é importante que muitas pessoas saibam adaptar brinquedos para que as crianças com incapacidade possam brincar. Mas não fez aquilo que eu achava que passado uma década teria acontecido que era mudar a legislação.
Para que pudessem ser vendidos em estabelecimentos comerciais?
Para que as superfícies comerciais que vendem brinquedos tivessem um espaço com alguns brinquedos adaptados. A campanha não fez os fabricantes de brinquedos pensarem nesta população. Isto não é um problema de Portugal, é um problema mundial. Lá está o preconceito da sociedade que acha que as crianças com incapacidades não brincam. É um disparate.
O que falta aqui? Vontade política?
Vontade política e o facto de não se parar para pensar nessa necessidade.
A ESECS é pioneira ao ter um mestrado em comunicação acessível. A comunicação é o ponto de partida para derrubar barreiras?
É fundamental, sem comunicação é completamente impossível. E quando pensamos em comunicar para todos, já estamos a quebrar barreiras.
Quais são as maiores falhas dos meios de comunicação social?
É ainda pensarem só para um tipo de população, para a população-padrão. Temos televisões que tem intérprete de LGP, mas apenas nas horas que a lei determina, normalmente são espaços informativos ou de entretenimento, mas depois de cumprirem aquelas horas, não pensam mais no assunto. Deveríamos ainda pensar nos 65% dos portugueses que são os idosos, que têm baixa literacia e têm demências. Estes 65% que são consumidores de comunicação não estão a chegar lá porque o modo como os media comunicam não é adequado.
Sente que trabalha, por vezes, contra a maré?
Sinto. Todos os dias sinto porque todos os dias tento fazer alguma coisa para melhorar a vida destas pessoas, que é alguma coisa que por direito já deveriam ter. Talvez seja um bocadinho naif, mas se eu pudesse eu não aceitava, por exemplo, que a televisão não tivesse um intérprete de Língua Gestual Portuguesa (LGP) em todos os programas, teletexto ou legendagem. Achava que todas as pessoas deveriam saber o básico de LGP, e não posso admitir que os serviços públicos, como Finanças e Segurança Social, não tenham funcionários para dar respostas a esta pessoas, que muitas vezes não são atendidas. Só deixarei de remar contra a maré quando a sociedade pensar de imediato para todos quando pensar em qualquer projeto.
Costuma reclamar quando alguém estaciona num lugar para pessoas com mobilidade reduzida?
Sempre e temos que dar os parabéns a este Governo por ter tido a coragem de aplicar coimas a pessoas que estacionem indevidamente. Quando vejo, deixo sempre um cartão com uma frase apelativa um pouco ao estilo do programa “E se fosse consigo, gostava?”. Irrita-me muito quando estas situações acontecem mas irrita-me mais quando vamos no passeio e temos um conjunto de carros estacionados que tiram a mobilidade a toda a gente.
As pessoas com deficiência reclamam ou preferem não o fazer?
Não reclamam, acham que não vale a pena e que nada vai mudar. Saiu uma nova legislação relativa à prioridade, mas isso mostra como o povo não é. Quando era pequena ensinaram-me que tenho que dar prioridade a pessoas grávidas, com deficiência e mais velhas. Não faz sentido essa legislação porque estas pessoas, naturalmente, deveriam passar à frente, é uma questão de civismo.
Leiria é uma cidade inclusiva?
É uma cidade que está a fazer o caminho para a inclusão. De facto é uma bandeira, diz-se que Leiria é a cidade da inclusão, concordo que temos feito muitas coisas, mas é uma cidade que está “a caminho”.
Em Leiria, qual é o pior exemplo em termos de inclusão?
Um dos piores exemplos é a nossa rede de transportes. Acho que não funciona e a nomenclatura usada nas paragens é assustadora, ninguém entende nada daquilo. Como se definiram os percursos com cores quando nós sabemos que 15% da população masculina é daltónica e quando existe um código (colorADD) criado por um português e que é usado no mundo inteiro para os daltónicos? Temos que melhorar muito a esse nível e não só para as pessoas com deficiência mas para as pessoas de idade.
E o melhor exemplo?
Destaco o Museu de Leiria. Ainda há muitas coisas a fazer mas pensou-se logo num museu quase para todos. Não há soluções idílicas mas para um museu que ocupou um espaço já existente, acho que as soluções foram muito bem conseguidas.
Nestes dez anos, a campanha “Mil brinquedos, Mil sorrisos” permitiu a recolha e adaptação de cerca de 5.000 brinquedos destinados a crianças com incapacidade. A campanha ultrapassou fronteiras e estendeu-se a quatro continentes, tendo ainda sido replicada no Brasil no âmbito de um protocolo celebrado entre o Politécnico de Leiria e duas universidades brasileiras. Por cá, envolveu mais de 1.200 estudantes e professores voluntários do Departamento de Engenharia Eletrotécnica da Escola Superior de Tecnologia e Gestão que se dedicaram à adaptação de brinquedos com sistema eletrónico simples para que crianças especiais pudessem também brincar.
Em Portugal, a escola é inclusiva até ao 12º ano, mas não são criadas condições para que os jovens com deficiência possam prosseguir estudos no ensino superior. É o calcanhar de Aquiles da Educação?
Acho que sim. Costumo brincar e digo que quando as crianças chegam ao 12º ano por milagre desapareceram as suas deficiências. Tivemos o ano passado os primeiros jovens com deficiência que chegaram ao 12º ano com escolaridade obrigatória. Depois não pensamos para onde é que vão. Recebemos no ensino superior jovens com alguma incapacidade a nível sensorial – cegos, surdos ou com deficiência a nível da mobilidade – porque não têm problemas cognitivos, embora com muitas dificuldades e porque algumas instituições resolvem acolhê-los. A maior parte das instituições não acolhe estes alunos porque não são obrigadas nem têm condições para isso – como quartos adaptados, residências, salas em locais acessíveis, autorização de acompanhamento. Não há uma legislação, há um iato depois do 12º ano.
O que é que acontece aos restantes?
Temos jovens com incapacidade inteletual a quem está completamente vedada a hipótese de estudar no ensino superior e acho que isso tem que mudar completamente. As instituições têm que perceber, tal como fizeram quando criaram universidades seniores, que têm que criar respostas para estes jovens, porque também têm direito a ter esta experiência. Eu posso dar um exemplo: um jovem com síndrome de Down pode muito bem ser trabalhado e vir a executar um ótimo trabalho numa fábrica de moldes, num restaurante, numa cantina, num hipermercado, e ser um excelente funcionário. Quem melhor do que as instituições de ensino superior, e atrevo-me a dizer quem melhor do que os institutos politécnicos porque são de mais proximidade e estão mais ligados à prática para terem cursos adequados para que estes jovens?
O Politécnico de Leiria é um bom exemplo?
É um bom exemplo porque de facto tem muitos alunos com necessidades especiais, quase uma centena entre cegos, surdos, com multideficiência, paralisia cerebral, mobilidade reduzida, dislexia ou perturbações do espectro do autismo. Estamos a falar de jovens que, com determinadas adaptações no seu currículo, podem fazer o seu percurso e tirar o seu curso profissional (TESp), a sua licenciatura ou mestrado. Mas não temos respostas para os jovens com incapacidade intelectual. É um pouco um contrassenso porque recebemos no CRID e nos outros espaços das escolas do Politécnico imensos jovens do secundário que têm que fazer um estágio mas depois não lhes damos uma oportunidade para que possam fazer um curso especifico para continuarem a treinar essas capacidades e depois estarem aptos para o mercado de trabalho.
Porque é que as empresas não estão mais recetivas a empregar pessoas com deficiência?
Há ainda um grande desconhecimento e, muitas vezes, os empresários não sabem os benefícios que o Estado lhes pode dar ao contratarem pessoas com incapacidade. Todos os empresários que conheço, que recebem pessoas com incapacidade, dizem que são funcionários excecionais.
Onde é que a sociedade mais falha em relação à pessoa com deficiência?
Em não respeitar o outro. Quando não temos capacidade de respeitar o outro, também não temos capacidade para respeitar a pessoa com deficiência. A sociedade falha porque ainda tem muito preconceito. Vivemos numa sociedade que está constantemente a incutir valores no sentido de que devemos respeitar a diferença – até existem imensos slogans como “Todos diferentes, todos iguais”. Mas nós não somos todos iguais.
Mas os portugueses são conhecidos por serem um povo solidário…
Não tem nada a ver. Somos um povo muito solidário e perante uma catástrofe estamos prontos para ajudar, mas, às vezes, e não querendo ser mal-entendida, essa solidariedade é um bocadinho assim: “eu já fiz a minha função, já resolvi, já ajudei e portanto posso continuar o meu caminho”. Ser solidário não é fazer uma ceia de natal com os sem-abrigo. Não era mais interessante congregar estes esforços e tentar perceber como é que podemos tirar estas pessoas da rua? Ou utilizar o tempo gasto em organizar uma festa de angariação de fundos para instituições ligadas à deficiência e pensar como colocar estes jovens no mercado de trabalho? Eles não precisariam deste tipo de instituições e estariam a trabalhar para o país. Ser solidário não significa para mim respeitar a diferença. Como povo, acho que estamos muito longe de respeitar a diferença.
Fala-se cada vez mais em equidade e menos em inclusão. Porquê?
Inclusão é incluirmos todos, equidade é ter a capacidade de incluir essas pessoas dando-lhes aquilo que elas necessitam para ultrapassar as suas incapacidades. Há uma imagem que costumo usar com os meus alunos que é a de três meninos que estão a olhar para um espetáculo de futebol. Eles têm alturas diferentes e demos a todos banquinhos iguais. Fizemos inclusão, mas o mais pequeno não consegue chegar lá, mesmo pondo-se em bicos dos pés. Tenho que lhe dar um banco diferente para que consiga lá chegar. Voltamos ao mesmo: respeitar a diferença de cada um em vez de tentar mudar as pessoas e elas serem todas iguais e padronizadas.
As pessoas têm dificuldade em relacionar-se com quem tem limitações? É uma questão de sensibilidade ou de educação?
Também é uma questão de sensibilidade. A sociedade durante muito tempo rejeitou as pessoas com deficiência, escondeu-as. Depois houve uma fase em que passaram a ser heróis quando faziam alguma coisa que parecia extraordinário mas que não era. E temos vivido numa balança com dois pratos e ainda não se conseguiu equilibrar. Ainda temos muitas pessoas a considerar extraordinário que uma pessoa cega possa escrever no computador. É algo perfeitamente normal mas temos essa dificuldade. Qualquer ser humano tem sempre receio do que é diferente, mas continuo a achar que tem muito a ver com o facto de não nos colocarmos na posição do outro. A sociedade tem coisas muito ridículas como por exemplo as casas de banho para pessoas com mobilidade reduzida. Na maioria das vezes, há uma casa de banho para o sexo masculino, outra para o sexo feminino e uma casa de banho para pessoas com mobilidade reduzida. Então mas estas pessoas não têm sexo?! Logo aí, falhamos.
Diz-se que Leiria é a cidade da inclusão. Concordo que temos feito muitas coisas mas é uma cidade que está a fazer o caminho. As barreiras arquitetónicas são o problema mais visível, mas não é só por isso, mas porque tem essa bandeira em determinados momentos”. E eu acho que não devia ser só quando estamos a comemorar o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência ou nessas datas. Leiria deveria ser uma cidade pensada para todos. Tem condições para isso. Primeiro porque a Câmara e o Politécnico trabalham de mãos dadas. A nossa sociedade também peca porque trabalhamos muito pouco em equipa, e não cruzamos os saberes.
A nível mundial, em que patamar está Portugal nas acessibilidades e equidade?
Posiciona-se bem apesar de tudo. Na Europa, podemos ter países melhores do que Portugal ao nível das barreiras físicas, transportes públicos ou acessibilidades, mas ao nível das barreiras mentais nem por isso. Temos os países nórdicos em que as pessoas com deficiência têm toda a proteção – embora também não concorde que tenham toda a proteção – e um grande grupo de países que ainda têm as pessoas com deficiência segregadas. Temos ainda países, que até vemos como modelos, como a Alemanha, a França ou a Espanha, em que estas crianças e jovens estão em escolas à parte.
Mas não há diretrizes orientadoras neste sentido?
Há diretrizes muito claras da Organização das Nações Unidas NU que diz que a educação deve ser feita em conjunto, nomeadamente a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Eu não acho que Portugal esteja tão mal assim a esse nível quando comparado com outros países da Europa. E se compararmos com outros continentes, Portugal está muito bem. Aliás, nós temos assistido ao regresso de alguns emigrantes para que os seus filhos possam fazer o ensino superior em Portugal. Não há ainda legislação mas sabem que eles aqui podem ter respostas. Muitas vezes, nos países onde vivem, quando os miúdos terminam o que nós chamamos o 9º ano, nem sequer lhes dão hipóteses de fazerem mais estudos, tendo ou não incapacidade inteletual.
É correto que o termo Necessidades Educativas Especiais (NEE) englobe do mesmo modo todas as incapacidades?
O termo já está a começar a cair em desuso. Neste momento falamos mais em Necessidades Especiais (NE) porque todos nós temos alguma necessidade especial nalgum momento da nossa vida, e por coisas tão simples como usar óculos ou ter uma incapacidade motora momentaneamente. Na minha opinião, as pessoas não deveriam ser catalogadas, porque a escola deve responder a todos através da diferenciação pedagógica. Dos 20 alunos que estão numa sala de aulas, nenhum deles é igual. O problema é que durante anos, nós massificamos o ensino e achamos que poderíamos debitar de igual modo para todos. Percebeu-se agora que não era possível. Cada um tem uma necessidade especial que pode não ter nada a ver com incapacidade inteletual ou física. Nós não aprendemos todos do mesmo modo. Cada vez mais, temos que fazer um ensino diferenciado e acabar com rótulos que não fazem muito sentido.
Todos os professores deveriam ter então formação nessa área?
Seria ideal e já começa a acontecer. Na ESECS, não há ninguém que saia sem ter formação em educação especial. Todos os professores têm uma unidade curricular onde aprendem aquilo que é básico.
O Estado diz-se empenhado em promover a inclusão, mas ainda falha…
O Ministério da Educação é um ministério muito complexo. É tão extenso, tem tanta gente que isso complica. Deveria haver uma ligação tremenda entre vários ministérios, como o da Saúde e do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia. Não faz sentido que os jovens que vão ser professores não tenham uma formação em ensino especial. E vou um bocado além disto: ninguém deveria sair do ensino superior, de nenhum curso, sem ter pelo menos um seminário para perceber as coisas básicas sobre a deficiência.
Entrevista publicada na edição de 4 de janeiro de 2018 e editada
Martine Rainho
Jornalista
martine.rainho@regiaodeleiria.pt
Sérgio Claro (Fotografia)