A comemoração dos cem anos sobre a restauração da Diocese Leiria-Fátima marca um momento inédito: a realização de um congresso para discutir a ação e o legado deste território eclesiástico. “Processo Histórico da Diocese de Leiria-Fátima – Congresso Evocativo do Centenário da Restauração” realiza-se entre 17 e 19 de maio, na Escola Superior de Ciências Sociais do Politécnico de Leiria, com organização do Departamento Cultural da Diocese de Leiria-Fátima e da Academia Portuguesa de História.
O que motiva este congresso?
A Diocese este ano está empenhada em celebrar o centenário da sua restauração. Vai fazê-lo de várias maneiras: com manifestações religiosas, com celebrações típicas daquilo que é o viver a fé. Mas o nosso bispo, D. António Marto, entendeu que isso não seria possível sem termos uma consciência histórica daquilo que é este território – considerando o território não apenas como os limites geográficos mas sobretudo como as pessoas que o constituem. Desde logo pediu que se fizesse um congresso de história para percebermos quem somos e que memória transportamos, para termos a consciência daquilo que depois há-de ser o futuro.
O programa abrange mais do que a restauração da Diocese de Leiria-Fátima.
Vamos começar com D. João III e a criação da Diocese. Entendeu-se que valia a pena, neste ano em que estamos a refletir a identidade da Diocese nestes cem anos, percebermos qual é essa identidade desde as suas origens. Esta é a oportunidade para fazermos um grande congresso, que vai ler o processo histórico desde a criação, no século XVI, até à atualidade, ao episcopado de D. Alberto Cosme do Amaral, deixando os episcopados de D. Serafim [Ferreira e Silva] e D. António [Marto], por estarem ainda vivos e não ser ainda matérias que consideremos trabalhar. Sobretudo entendemos que seria a altura de lançar o debate histórico que nos permitisse, daqui a algum tempo, ter as bases daquilo que há de ser a história da Diocese editada. Queremos que este congresso seja o gérmen de uma história da Diocese. Já há subsídios para isso, feitos ao longo dos anos 50 também. Mas é altura de fazer o balanço do que foi escrito, daquilo que está ainda por investigar – e imagino que os investigadores ainda estejam a fazer os últimos estudos para os virem apresentar na próxima semana.
Para quem vive a Diocese por dentro, qual é a expectativa em torno deste congresso?
Estou com muita expectativa. Sabemos que alguns investigadores vão dizer coisas que já conhecemos mas esperamos que haja novidade. Queremos também fazer ligação à história regional e local. É impossível estudar a história de um território eclesiástico sem perceber que ele está em rede muito estreita com o que são os decisores deste lugar, desta parcela do país. Queremos perceber como os congressistas vão fazer essa ligação ao território mais amplo e como os diferentes agentes da Diocese se relacionaram com os decisores dos governos locais e até nacionais.
Há muitas ligações entre a história da Diocese e a história do dia a dia das populações…
Desde logo o ouvir tocar o sino da torre, que é um equipamento que está num edifício da Catedral, mas que serve toda a comunidade. Isto é simbólico de tudo o que se poderia dizer. Este não é um congresso onde se vão tratar temáticas teológicas. Vão tratar-se temáticas históricas, o acontecido no tempo por ação dos agentes diocesanos que estão em estreita ligação com o território. Quisemos que o congresso tivesse uma componente de ligação à comunidade através da parte cultural: no primeiro dia vamos ter um concerto na Catedral, aberto a toda a comunidade (mesmo a quem não está inscrito no congresso) e, no segundo, vamos fazer uma visita à exposição que está no Museu de Leiria. Também quisemos que o congresso decorresse no Politécnico de Leiria e não nos “muros” da Diocese. Com isto estamos a trabalhar com aquilo que é o sentido da Igreja na atualidade, na linha do que é o pensamento do papa Francisco, que o nosso bispo acolhe e difunde muito bem: ir às periferias e rasgar as fronteiras. Uma das formas de dialogarmos com a sociedade, enquanto Igreja, é esta da investigação cultural e histórica.
Que resposta espera do público?
Gostaria que o público acorresse em massa. Quanto mais conhecemos o território da Diocese, mais conhecemos também o território em que habitamos. Isto não tem nada a ver com credos nem com a maneira de sentir a religião. Tem a ver com a identidade de um lugar, marcada, obviamente, pela ação da Igreja neste território.
Qual a importância da Diocese de Leiria no contexto nacional?
Sabemos pouco sobre este território, precisamente por ele ficar no “finisterra” daquilo que é a Diocese de Coimbra e a Diocese de Lisboa. Isso fez com que até a historiografia tivesse olhado pouco para este território. De todo o modo, Leiria surge na época de D. João III, o nosso rei humanista, no século XVI, um tempo em que as ideias estão voltada para uma escala mais humana e não tanto ao teocentrismo da Idade Média. Há essa necessidade de assistir à população que está aqui, provavelmente porque se entendeu que nem a Diocese de Coimbra nem a de Lisboa estariam a fazer a assistência devida a este território. Quando a Diocese é extinta, é por uma questão de gestão dos dinheiros da dioceses em Portugal. Quando as pessoas deste território conseguem demonstrar novamente à governação, já da República – nada favorável à questão religiosa -, que é necessário novamente ter um bispo aqui para assistir de forma eclesial a este território, é porque se demonstra que é muito importante a presença da igreja local com uma cátedra, com assento do bispo, neste local. Estou convencido que a Diocese de Leiria é uma peça-chave naquilo que é a orgânica das dioceses em Portugal. Espero que este congresso o venha a demonstrar.
Sem Fátima haveria restauração da Diocese?
Claramente. Está demonstrado e, um dos oradores, D. Carlos de Azevedo, publicou um livro em que trata o processo de restauração da Diocese a partir do arquivo secreto do Vaticano. E é muito claro: já antes da notícia de Fátima, estava em curso esse movimento para a restauração da Diocese. Não é o fenómeno de Fátima que dá origem a essa necessidade de haver aqui uma circunscrição eclesiástica. Isso vai ser demonstrado neste congresso.
Que ideia gostava de resultasse do congresso?
Vou à espera de ser surpreendido. Gostava que estas temáticas fossem uma parte dessa futura história da Diocese. Esta geração que está a evocar o centenário da Diocese tem a responsabilidade de olhar para o passado e deixar uma herança ao futuro. Essa herança pode passar por aqui. O que tentámos fazer foi, sem termos uma história da Diocese, inscrever as áreas temáticas que pensamos possam vir a dar essa futura publicação. Oxalá estes historiadores lancem as bases para isso.
Marco Daniel Duarte, diretor do Departamento do Património Cultural da Diocese de Leiria-Fátima, fala ao REGIÃO DE LEIRIA do Congresso Evocativo do Centenário da Restauração, um passo que considera decisivo para a futura publicação de uma história da diocese. A reflexão ao longo dos três dias vai, acredita, sublinhar a importância da Diocese no panorama das dioceses nacionais.
Programa
Construído em parceria com a Academia Portuguesa de História – para envolver “uma plêiade de investigadores ligados a várias escolas historiográficas” -, o congresso arranca com a criação da Diocese, “tentando perceber, no mapa político, das dioceses à época, porque é que surge aqui mais uma diocese, por D. João III, entre Coimbra e Lisboa”, explica Marco Daniel Duarte. Também se analisa a ação das elites locais, à luz do Concílio de Trento e da ideia de que “a Igreja Católica tinha de formar elites para dar assistência às populações. Os bispos e as elites da cidade perceberam isso muito bem”. Os bispos da época moderna merecem também um painel, antes da questão da extinção da Diocese: “Quando foi extinta não foram apenas as elites eclesiásticas que alimentaram as ideias da Diocese ser restaurada. As elites camarárias e as forças vivas da cidade, e de todas as cidades que estavam na circunscrição de Leiria (Porto de Mós, Batalha, Ourém), foram a Lisboa reivindicar que se trouxesse de novo o estatuto de diocese a Leiria”. D. Carlos Azevedo vem de Roma para tratar o assunto.
No segundo dia, D. Manuel Clemente, bispo de Lisboa e historiador, fala sobre “a diocese extinta até ter o estatuto de diocese central na vida ecleciástica do país, sobretudo pela questão de Fátima. É uma centralidade não apenas no país, mas mundial”, nota Marco Daniel Duarte. Sexta-feira, dia 18, será também importante para perceber o património artístico da Diocese, “uma área que nos escapa quando andamos pelas ruas”, diz o diretor do Departamento do Património Cultural, lembrando a Sé Catedral, o Santuário dos Milagres ou a imagem da Senhora da Encarnação.
Tanto quinta como sexta-feira, Carlos Fernandes fará um apontamento sobre os rostos da história ignorada da Diocese nos últimos cem anos. “São pessoas que se calhar vão escapar à história geral, porque não ficam nos arquivos, ou só vão ficar daqui a muitos, muitos anos”.
O terceiro e último dia do congresso fixa-se sobre o tempo contemporâneo, na ação de D. José Alves Correia da Silva, primeiro bispo da Diocese restaurada, de D. João Pereira Venâncio e de D. Alberto Cosme do Amaral. Para o próprio Marco Daniel Duarte sobra “Diocese de Fátima”: “É uma provocação que procura trazer para este território que é espacial uma espécie de território psicológico”. Ou seja: uma diocese em que os bispos têm de legislar sobre peregrinos que chegam de dioceses de todo o mundo.
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