Fernando Piedade e João Mourinho têm 34 anos, são naturais de Vieira de Leiria, e cresceram sempre ao lado do rio Lis. Nos últimos anos começaram a dedicar-se à fotografia e alargaram o conhecimento sobre a vida animal. Funcionários na área da restauração e comércio, aproveitam as folgas e o tempo livre para “alimentar” o vício de fotografar a “riqueza que o rio oferece”. A pensar na preservação e conservação da vida animal e do rio
Fotos: Naturalis fotografia e Joaquim Dâmaso
Ainda o sol não nasceu e já João Mourinho e Fernando Piedade definiram a posição para as próximas horas. Quando a maioria das pessoas ainda está a dormir, estes dois amigos estão bem despertos e disponíveis para observar e registar o movimento da bicharada que começa a esvoaçar nas margens do rio Lis, na zona da foz, na Praia da Vieira.
Dentro da tenda ou com um ghillie vestido (um fato camuflado), os fotógrafos amadores passam horas, quietos, de dedo indicador no botão da máquina fotográfica, à espera que o pássaro apareça e prontos a registar o momento. Todos os animais são importantes, ainda que o guarda rios mereça uma atenção especial.
Na realidade, trata-se de um casal. “Erica” e “Afonso”, como carinhosamente a dupla de fotógrafos os batizou, formam um casal de guarda-rios que desde janeiro é seguido. “Tem sido gratificante conhecer e compreender melhor os hábitos destas duas criaturas teimosas e tímidas como tudo. Por toda a sua beleza e comportamento único, estes dois têm nos tirado muitas horas de sono e elevado os nervos ao máximo”, dizem.
O pássaro está a nidificar numa das margens e todo o processo está a ser fotografado. “Era um animal que desconhecia que existia aqui e que me dá um gosto imenso fotografar. Sabia que existiam garças, gaivotas mas quando vi o pássaro azul, chamou-me a atenção. Ao longo destes quatro meses tem sido fantástico. Enerva-me muitas vezes estar aqui horas e horas e ele só passar por nós uma vez e ir embora, mas a verdade é que já faz parte de nós”, explica Fernando Piedade.
A maré baixa é dos períodos mais favoráveis para captar o voo e o período de alimentação das aves. Na primavera, o número de espécies é maior, fruto da rota migratória, embora no inverno, com a época das chuvas, a zona dos campos do Lis seja mais procurada.
Cartaxo comum (Saxicola rubicola). O peito laranja e a cabeça preta funcionam como um semáforo, quando a ave se empoleira nos postes e cercas das zonas abertas. Esta ave é uma das mais fáceis de observar, devido à sua conspicuidade.
Garça real (Ardea cinerea) Com quase um metro de altura, é a maior das garças que ocorrem em Portugal. É uma ave cinzenta, que se destaca pelo seu longo pescoço. Ocasionalmente pousa em árvores ou mesmo em edifícios.
Guarda rios (Alcedo atthis) Pequena ave aquática é uma das espécies mais coloridas da avifauna portuguesa e presente em todo o território nacional. Muitas vezes é detectado quando faz o voo rasante e direto. Quando pousado, é facilmente reconhecido pelo dorso e pelas asas azuis e pelo peito e ventre cor-de-laranja.
Corvo marinho de faces brancas (Phalacrocorax carbo) Tem um pescoço longo e asas igualmente longas. O bico amarelo contrasta com o preto da plumagem e, no final do inverno, alguns indivíduos adquirem uma mancha branca em cada flanco e outra na cabeça. É um nadador exímio, que mergulha para apanhar peixe.
Ver, sentir e desfrutar
Nascidos e criados em Vieira de Leiria, o rio faz parte das vidas dos fotógrafos amadores da Naturalis. Nos últimos anos começaram a olhar para o curso de água de outra forma. João Mourinho sempre gostou de acompanhar a vida animal e privilegia o contacto com a natureza. A compra da máquina fotográfica potenciou o desejo de registar “a riqueza existente nas margens” e arrastou o amigo de infância, Fernando Piedade, para as incursões no rio.
Se numa primeira fase, a ideia passava por fotografar verdilhões, cartaxos, melros, pegas, corvos-marinhos e muitos outras aves que existem na foz do Lis, com o passar do tempo, o projeto pretende estender-se também aos mamíferos, répteis e anfíbios e aos campos do Lis.
“Queremos com o nosso trabalho chamar a atenção para a necessidade de preservar e conservar a vida selvagem associada ao rio Lis. É um aspecto muito importante para a conservação desta região e que nos parece que é muitas vezes esquecido. As pessoas falam muito da poluição do rio, que também é importante, mas a vida animal traz uma riqueza incalculável ao rio”, justifica João Mourinho. “Às vezes, o gosto maior nem é conseguir a fotografia ideal. É melhor sentir, ver o animal, saber que vive no rio e desfrutar o momento. É uma sensação brutal”, completa.
“O que o rio nos tiver para oferecer, nós queremos viver. Temos uma ligação com ele desde crianças”, acrescenta Fernando Piedade.
Pilrito comum (Calidris alpina) Plumagem que varia entre o castanho e o cinzento, mas sem nenhuma marca particular. O bico é longo e ligeiramente recurvado.
Bufo-pequeno (Asio otus) É das aves rapinas noturnas em Portugal mais difícil de observar. É uma ave muito discreta
Tordo-comum (Turdus philomelos). Mais pequeno que o melro-preto, tem plumagem castanha. As partes inferiores são brancas, sarapintadas de castanho
Cegonha branca (Ciconia ciconia) Tem pescoço e patas compridas, tonalidade branca do corpo, com as pontas das primárias e secundárias pretas. Cor vermelha viva no bico e patas.
Fonte: Aves de Portugal
Fotos: Naturalis fotografia
Limpeza sem cuidado
Sete meses depois do incêndio que devastou o Pinhal de Leiria, João Mourinho adianta que a vida animal no rio não foi afetada diretamente. Já se ouvem mais aves do que em novembro mas o “refúgio de muitos [pássaros] terá que ir abaixo”. “As pessoas estão muito vidradas em limpar os terrenos mas o que sobrou é refúgio para muitas aves. É preciso sensibilizar a sociedade para esta realidade”, alerta.
Também a limpeza das margens, sem critério, é criticada. “Não houve cuidado em assegurar que os ninhos e as aves não sofriam impacto com o corte das canas e das ervas”, denuncia Fernando Piedade.
A opinião é partilhada por José Artur, docente que acompanha o Clube de Observação de Aves, no centro de Leiria, área que também foi intervencionada. “A limpeza foi feita, este ano, na pior altura. Sabemos que é preciso limpar e, por causa das chuvas, só agora foi possível, mas foi feita uma razia, aliás em todo o país, que resulta da falta de sensibilidade para estas causas. As aves têm uma capacidade fantástica de se adaptarem e apesar de as tratarmos mal, elas adaptam-se”, esclarece.
Quanto ao trabalho de João e Fernando, este não pára quando saem da margem do rio. Tratadas as fotografias, é tempo de identificar cientificamente o animal, salvar todos os registos e partilhar no Facebook. A reação, dizem, é imediata. “As pessoas perguntam ‘Isso existe aqui? Temos cá disso?’ Claro que temos, olhem menos para o telemóvel e mais para o que vos rodeia”, argumenta Fernando Piedade, que dá por ele “enfiado numa tenda, duas, três ou quatro horas, a transpirar por todo o lado, só para conseguir fotografar um passarito”.
O registo de João e Fernando é amador, e feito nas horas vagas e folgas, mas os fotógrafos estão disponíveis para trabalhar com entidades oficiais e ajudar a fazer o levantamento da população animal existente na região.
Marina Guerra
Jornalista
marina.guerra@regiaodeleiria.pt
(Artigo publicado a 17 de maio de 2018)
Existem 442 espécies de aves em estado selvagem em Portugal Continental, das quais 166 são consideradas raridades pelo Comité Português de Raridades da SPEA (Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves).
A lista de exemplares com aves registados no distrito de Leiria, segundo o portal Aves de Portugal, em abril passado, é composta por 329 espécies, embora outras bases de dados indiquem que este número pode ser superior.
Só na cidade de Leiria, ao longo do ano, é possível observar 75 dessas espécies. Em média, nas saídas do Clube de Observação de Aves do Colégio Nossa Senhora de Fátima (leia o artigo aqui), o grupo identifica duas dezenas de pássaros. Já nos Campos do Lis, o número sobe até às 78 aves, que vão variando ao longo do ano.