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Cultura

A Porta. O festival que condensa entre dois fins de semana o sonho de um ano inteiro

São 32 concertos, 28 workshops, mais de 20 artistas plásticos e inúmeras outras atividades que despejam vida e energia em Leiria entre 16 e 24 de junho.

Manuel Leiria
Jornalista
manuel.leiria@regiaodeleiria.pt

São 32 concertos, 28 workshops, mais de 20 artistas plásticos e inúmeras outras atividades que despejam vida e energia em Leiria entre 16 e 24 de junho. Mentor e um dos organizadores d’A Porta, Gui Garrido (na foto com Bonga, um dos destaques deste 2018), fala sobre de onde vem e para onde vai o festival que vai para a quarta e maior edição de sempre e que se estende para novas zonas da cidade.

 

 

[Há] uma maior exigência da nossa parte em desafiar e querer meter dedos nas feridas – e ao mesmo tempo tratar delas”

 

“O objetivo é o projeto A Porta ser instalado durante o ano, com programas de residências artísticas dedicadas às artes plásticas, programas infantojuvenis e para famílias, concertos e misturas entre artistas ao longo do ano”

 

“É o salto no desconhecido que nos fascina”

 

“A partir do momento em que acharmos que o festival A Porta deixa de ter significado, quer dizer que há outros projetos a ganhar significado. Não nos vamos tornar um dinossauro dos festivais”

 

“O que sinto, em comparação com outros festivais a que vou, é que somos um festival verdadeiramente intergeracional”

 

“Há coisas grandes, mediáticas, mas muitas vezes a magia está nos pormenores”

 

“Nós alimentamo-nos dessas pessoas. É isso que nos dá força para continuar, porque há muita “porrada” que apanhamos para isto acontecer. Montar este projeto não é fácil”

Falta pouco para começar mais uma edição d’A Porta. Qual é o sentimento?
É grato pelas pessoas que estão à nossa volta e que nos permitem avançar. É grato pela vontade de continuar e querer fazer acontecer. Isso ganha a qualquer outro sentimento que nos mande um bocadinho abaixo. Tem-se falado muito em dores de crescimento, mas não temos noção se elas são pelo facto do festival ter crescido a nível territorial e de dias ou se é por haver uma maior exigência da nossa parte em desafiar e querer meter dedos nas feridas – e ao mesmo tempo tratar delas.

Porquê mais dias?
Queríamos dar mais destaque e tempo à Casa Plástica. Este ano embarcámos na aventura de ir para as antigas instalações da EDP e fez todo o sentido utilizar a realidade circundante, nomeadamente o Jardim da Vala Real, que nos abriu as portas de outra zona da cidade. O início do festival é mais de usufruto do espaço do jardim, com programação desafogada e tempo para estar. Mas há vontade de fazer mais: o objetivo é o projeto A Porta ser instalado durante o ano, com programas de residências artísticas dedicadas às artes plásticas, programas infantojuvenis e para famílias, concertos e misturas entre artistas ao longo do ano. E o festival, mais do que ser um “fogo de artifício” que acaba ao fim de x dias, ser um fim e início de ciclo, apontando direções para os seis meses seguintes. Ainda não é possível. Por isso condensamos entre dois fins de semana o sonho de um ano inteiro.

A cidade precisa disso?
Faz todo o sentido. Dentro da programação, umas vezes de forma mais subtil, outras menos, estão as inquietações que temos. A Porta quer muito lançar sementes e não somos nós, enquanto festival, que as tem de colher: é o cidadão, os eventos, os novos territórios, as escolas. O ser humano precisa de um certo ritmo para se habituar. Se for uma vez no ano, faltam os outros 364 dias para preencher. Não é um exclusivo nosso, mas teríamos todo o gosto em criar uma base mais sustentável e ter um projeto que consiga ir mais fundo.

O que está pensado?
Depois disto, vamos descansar uns meses, fazer um ou outro apontamento suave e batalhar para, a partir do primeiro semestre de 2019, concretizar algumas coisas. Temos algumas coisas pensadas e a vontade é muita. Se o conseguirmos ficaremos bastante felizes. É sinal que o projeto está a evoluir.

O festival é mais causa ou consequência?
Acho que foi as duas coisas. Não nos limitamos a ser alguém maldizente que está no sofá a apontar o dedo. Apontamos questões, mas tentamos criar estruturas que as tente solucionar. A rua Direita e o centro histórico já foi extremamente importante para a vida de Leiria. Deixou de o ser porquê? Aparecimento de shoppings? Criámos uma estrutura para as pessoas voltarem. O Parque do Avião é um sítio lindíssimo, nobre, à beira rio, onde eu joguei ténis, dei umas beijocas, caí e bati com o queixo no chão, dei milho aos pombos… Porque é que agora não há isso? O Jardim da Vala Real a mesma coisa. A Villa Portela já fez sonhar toda a gente. Já lá entrámos no ano passado, no jardim, e voltamos agora com um projeto de quase 45 pessoas, com First Breath After Coma. É o salto no desconhecido que nos fascina.

Quando começou, o festival criou um impacto e efeitos que se estendem até hoje. Como é que olham, por exemplo, para a rua Direta, onde tudo começou?
Não temos capacidade para acompanhar todos os lojistas e moradores como gostávamos, mas dá-nos uma grande alegria quando vemos uma loja ser ocupada; e dá-nos um aperto no coração quando alguma não se consegue manter. É sinal que a rua ou este centro histórico ainda não está como gostaríamos. Mas não queremos tomar louros por nada, fazemos isto porque acreditamos que deve ser feito. Não é por questões monetárias. Felizmente temos conseguido pagar a todas as pessoas, nem que seja simbolicamente. Fazemos o festival porque acreditamos que o mundo pode ser melhor, porque acreditamos na educação pela arte e porque temos a missão de reabilitar as nossas vidas, as nossas histórias, as nossas cidades. Fomos influenciados por outros, influenciamos outras pessoas e agora se calhar nos somos influenciados por essas pessoas. Há aqui uma criação de uma rede que é muito bonita. Não estamos aqui para ganhar medalhas, nem para ser o número 1.

Nestes quatro anos aconteceu muita coisa: o festival surgiu a par da Preguiça Magazine, que acabou, e lançou o espaço onde está o Atlas Hostel, onde estamos a falar, que não existia e hoje é um dos sítios mais dinâmicos da cidade. Talvez por coincidência, começaram a surgir mais bandas, mais espaços abriram, as pessoas parecem disponíveis para mais coisas…
Vivemos momentos de crise bastante complexos e mesmo a nível das artes houve uma crise, porque as pessoas não partilhavam. Nunca foi essa a nossa política e achámos sempre que juntos somos mais fortes para conseguir fazer isto. Vi uma vez um documentário sobre o primeiro tolo que vai para a pista de dança e há mil olhos a olhar para ele – e depois vai tudo atrás. No primeiro ano o festival foi uma loucura da minha parte, que não morava em Leiria… É muito bom ver que, ao longo dos anos, foram acontecendo muitas coisas. Passei aqui [no Atlas Hostel] muitas horas a limpar, a montar e a ensaiar e a imaginar o quão fantástico seria este espaço para acolher projetos. E é fantástico saber que estas pessoas agarraram neste projeto e hoje é fundamental em Leiria isto ter acontecido. Ao mesmo tempo, acontece o contrário: a Preguiça Magazine, que era extremamente importante – e acho que devia continuar a ter essa importância -, acabou por falecer. A Metamorfose também deixou de fazer coisas. Mas apareceram outras coisas. Há um ciclo perfeitamente normal. Estamos a viver em Portugal um momento de capacidade criativa gigantesco, de importação e exportação nas mais diversas áreas artísticas. Há quase 300 festivais em Portugal! Somos um país muito festivaleiro. Mas a partir do momento em que acharmos que o festival A Porta deixa de ter significado, quer dizer que há outros projetos a ganhar significado. Não nos vamos tornar um dinossauro dos festivais só por o ser.

Como é feita a programação?
Felizmente caem cada vez mais na nossa caixa do correio os projetos A, B ou C. Muitas vezes somos nós que recorremos a outras pessoas. O patamar tem de subir e por isso, com muito respeito por todos, também temos de dizer alguns nãos. Mas há sempre vontade de crescer e vamos a quatros novos territórios: Teatro José Lúcio da Silva, a Vala Real, Casa Plástica e a Stereogun…

Não há receio de dispersão?
Um pouco. Nos dias 23 e 24 acontecem coisas em simultâneo na Casa Plástica e aqui [na rua Direita] e temos a noção de que, a priori, não teremos a mesma massa de pessoas num lado e no outro. Há uma certa cacofonia, porque é muita coisa ao mesmo tempo, mas queremos que as pessoas se encontrem, falem e bebam um copo.

A Porta chama público de fora?
Devagarinho caminha para aí. No ano passado vieram amigos de outros pontos do país. Este ano, o meu grande companheiro da dança, Pieter Ampe, vem da Bélgica ver o festival: já temos um visitante internacional [risos]. Quanto mais diferenciadora for a programação, mais vai atrair gente. O festival é muito dedicado aos leirienses, mas é claro que ambicionamos que seja nacional. Tudo a seu tempo, respeitando a nossa escala e capacidade. Estamos na quarta edição, ainda somos um bebé. O crescimento foi um pouco rápido e temos de ver se mantemos o equilíbrio.

O que pode diferenciar o festival?
Quanto mais diferenciadores formos, quanto mais propostas únicas tivermos, mais interesse vamos criar, até porque Leiria é uma cidade lindíssima. Aqui, num raio de 50 quilómetros, há mil e uma coisas para fazer. O que sinto, em comparação com outros festivais a que vou, é que somos um festival verdadeiramente intergeracional. Temos muita atividade para o júnior, para o bebé, para a criança e somos cada vez mais inclusivos, com as joelletes no Parque do Avião, a Lei Sk8 School que vai fazer um workshop com a ACAPO, jogos de tabuleiros com os seniores… Há muitos outros sonhos que não são realizados e por isso dói-nos um bocado o coração, mas não conseguimos estar acordados 52 horas por dia para os conseguirmos realizar. Mas este é um festival para todos, que quer englobar todos, que é multidisciplinar e maioritariamente gratuito, o que permite que muito público tenha contacto com o concerto y, o workshop h. Tentamos transformar Leiria num palco gigante, onde se desenrolam 1001 atividades.

Se pudesse escolher uma única proposta para ver, qual seria?
É um bocado inglório… São 32 concertos, 28 workshops infantojuvenis, mais de 20 artistas plásticas, mais de 20 atividades 1001 Portas! Há coisas grandes, mediáticas, mas muitas vezes a magia está nos pormenores. Temos o Bonga – o que para mim é um sonho -, os Dead Combo, o Conan Osíris, mas apelamos à curiosidade dessas pequenas fendas, desse olhar pela fechadura da porta e ver estes novos projetos musicais que estão a aparecer ou os magníficos workshops. A magia pode estar em ires à oficina [de bicicletas, na rua Direita] do sr. António e ele dá uma limpezasinha ao óleo da bicicleta e mete uma camisinha e fuma o seu cigarrinho para abrir a porta para um dos palcos mais mimosos que o festival tem. E tenho a noção que 99,9% das pessoas não sabe quem é o Afta 3000, que vai lá tocar. Nós apelamos à curiosidade dos projetos mais pequenos, que estão a nascer.

Um fenómeno comprovado são os jantares temáticos…
Um esgotou em quatro minutos, três esgotaram em 17 minutos…! Temos a perfeita noção que se tivessemos aberto mais quatro jantares, esgotavam num instante. Tem muita piada, porque no primeiro ano todos diziam que não ia resultar, porque Leiria não era não sei quê… e resultou no primeiro, no segundo, no terceiro e este ano… wow! Houve pessoas que meteram o despertador para aquela hora [para se inscreverem]! Por terem esgotado em 30 minutos estes quatro jantares, há em nós um sorriso gigante por fazermos isto acontecer. Também, de certeza, vamos ter projetos que vão ser falhados. Mas tem havido um crescimento exponencial ao longo dos anos e um carinho muito grande por parte das pessoas. Quer dizer que continua a fazer sentido. Nós alimentamo-nos dessas pessoas. É isso que nos dá força para continuar, porque há muita “porrada” que apanhamos para isto acontecer. Montar este projeto não é fácil. Há uma equipa que se esfalfa, que trabalha oito horas durante o dia na sua vida, e trabalha ainda muitas vezes oito horas em cima disso para isto acontecer. Se não fosse toda esta gente a acreditar, todos os artistas, os formadores, todas as pessoas a quem queremos pagar e que dizem “não, esta é a minha oferta para a cidade”, sem isto não dava. No final há que fazer o balanço e, aí sim, amor com amor se paga.

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