A SAMP dinamiza sessões semanais nas escolas Dr. Correia Mateus, Andrinos e Caranguejeira, que são um espaço de partilha entre as tradições portuguesas e ciganas
Martine Rainho
Jornalista
martine.rainho@regiaodeleiria.pt
Joaquim Dâmaso
Jornalista
joaquim.damaso@regiaodeleiria.pt
Todas as quintas-feiras, os alunos da comunidade cigana que frequentam a escola do 1º ciclo Dr. Correia Mateus, em Leiria, deixam a sala de aulas para participar numa sessão musical dinamizada pela SAMP – Sociedade Artística Musical dos Pousos. Levam com eles um amigo (não cigano) com quem partilham cantigas tradicionais do mundo, da cultura portuguesa e cigana, mas também erudita.
Sessões idênticas acontecem nas EB1 de Andrinos e de Caranguejeira e com um grupo do 2º e 3º ciclo da EB Correia Mateus. No passado dia 8, a visita de técnicas do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) que, com a Câmara de Leiria, apoia financeiramente o projeto “Il Trovatore – Os Roma do Lis”, levou-nos aos bancos da escola Correia Mateus, onde as diferenças se esbatem.
Airton, Aminadabe, Quessia, Nicole, Micael, Alícia, Filipe, Bea, Ana Sofia e Jessica brindaram-nos com um “Olá, que bom é estar aqui”, ao ritmo da viola e das vozes de Raquel Gomes, David Ramy e Filipa Cunha, professores da SAMP. Sem demoras, aqueceram a voz, treinaram a respiração e prepararam o corpo com algumas massagens e exercícios que apaziguara também alguma timidez.
O repertório, animado q.b., não deixou ninguém de fora, nem as representantes da ACM, nem António Oliveira e Donato Rosa, da direção do agrupamento de escolas (AE). Depois de um animado “Estou aqui”, entoaram um contagiante “África”, fizeram uso das mãos e dos log drums para marcar a cadência do “Canône africano”, ensaiaram passos de dança cigana com “Pajarito” e quando “Acabou”, sobravam sorrisos cúmplices e a sensação de dever cumprido.
O log drums (tambor de fenda) é um instrumento que as crianças têm oportunidade de tocar durante as sessões
Falta entretanto apenas um mês para montar o espetáculo que irá juntar na EB Dr. Correia Mateus cerca de 120 participantes entre crianças e adultos da comunidade cigana, e não só, de Leiria. Isto porque o projeto não envolve apenas os mais novos mas também as famílias, explica Raquel Gomes ao REGIÃO DE LEIRIA.
O evento, onde cabem música, canto, dança e teatro, será o culminar do projeto que a SAMP tem levado desde o ano passado às famílias da comunidade cigana do bairro da Integração. O projeto, que conta com o apoio financeiro do ACM e a Câmara de Leiria, foi inicialmente acolhido no espaço de culto do bairro. Com as obras de reabilitação em curso e a relocalização das famílias, o projeto passou a centrar-se na escola, particularmente no AE Dr. Correia Mateus que acolhe cerca de 40 alunos da comunidade cigana.
O balanço não podia ser mais positivo, afiança o diretor, que destaca, entre outras mais valias, o envolvimento, a aproximação e “a criação de pontes de entendimento, trabalho, parceria e amizade” entre as duas comunidades, cigana e não cigana. “Temos relações humanas pacificadas, absolutamente cordiais, os encarregados de educação sentem-se valorizados, reconhecem o esforço da escola e não se sentem uma minoria, mas uma parte da escola e da comunidade”, acrescenta.
Já David Ramy, que nasceu em Cuba e correu meio mundo com a mochila às costas antes de se fixar em Leiria, acredita que as artes, sobretudo a música, são um caminho privilegiado para aproximar culturas.
O projeto Il Trovatore aproxima crianças e adultos
As sessões começam sempre com exercícios de relaxamento e preparação da voz
Ele, que se assume como um “cigano migrante”, admite que a sua forma de estar facilitou a abordagem à comunidade cigana do bairro, que foi bastante recetiva. “Sobretudo quando falo do que vi e vivi com ciganos romanos em Itália, em Espanha, que tem uma comunidade muito forte e onde vivi muito tempo, na Alemanha e no Canadá. Devem achar que também sou um deles”, nota, convicto contudo de que a inclusão deve ser apenas “até ao ponto em que o outro quer ser incluído e temos que respeitar esta fronteira”. “Às vezes, vamos um bocadinho com a ideia de colonizador mas esse não é o objetivo. A ideia é chegarmos, propor e beber muito deles, a nível musical”, sublinha.
Raquel Gomes realça também a importância do envolvimento das famílias, com as quais a SAMP procura manter contacto semanal. “O desafio tem sido grande”, mas “ao olhar para o projeto, vimos que atravessámos um longo caminho porque, enquanto no início, tínhamos que os ir buscar, às casas, nos bairros, hoje querem muito estar connosco”. Ainda assim, nem tudo são rosas. “Às vezes, é complicado quando temos uma meta e porque aquilo a que estamos habituados não é fácil, e temos que nos adaptar e tentar descobrir um meio termo, para que eles nos consigam interpretar e aceitar e nós a eles, respeitando tudo o que eles têm e são”.
A ideia não é mudá-los, nem nós mudarmos, é tentar um meio termo, conseguirmos partilhar o que somos e eles partilharem as coisas tão boas que têm e vamos tentar mostrar isso no espetáculo”
Raquel Gomes
Professora na SAMP
As artes são um caminho muito afetivo. A música tira muita palavra, tira muita explicação. Fiz teatro, mas o teatro tem muita palavra. Era muito bom se o projeto fosse ad eterno mas como não é, a música é um veículo muito mais rápido”
David Ramy
Professor na SAMP
Isto que é um projeto devia ser um investimento. Nós que andamos na escola há muitos anos, percebemos que o investimento que fazemos hoje no pré-escolar e no 1º ciclo vai ser determinante nos anos futuros dos alunos”
António Oliveira
Diretor do AE Dr. Correia Mateus
Orfeão de Leiria e InPulsar lançam bases para mini orquestra
“Daqui P’ra Cá”, “Il Trovatore: Os Roma do Lis” e “Giróquestra”. São vários os projetos que nasceram em Leiria, mais precisamente no bairro da Cova das Faias, no âmbito do projeto de intervenção comunitária Giro ó Bairro, da responsabilidade da associação InPulsar.
Enquanto “Il Trovatore”, dinamizado pela SAMP, “migrou” o ano passado para o bairro da Integração e escolas do agrupamento Correia Mateus, com o apoio da Câmara e do Alto Comissariado para as Migrações, o Orfeão de Leiria e a InPulsar abraçaram o “Giróquestra”, com vista à formação de uma mini orquestra com a participação de dez crianças, entre os 6 e 12 anos, onde têm formação musical e aprendem a tocar um instrumento. As sessões semanais começaram há cerca de um ano e deverão prolongar-se por mais dois, com o apoio do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego.
Segundo Lisete Cordeiro, responsável da InPulsar, este pode ser o caminho para que estes alunos adquiram “ferramentas” e possam seguir estudos no ensino articulado na área da Música.
Antes disso, em 2014, vários jovens do bairro da Cova das Faias e alunos da Escola de Dança Clara Leão participaram num projeto de inclusão pela dança – “Daqui P’ra Cá” -, que contou o apoio do PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian, e terminou com um espetáculo de dança.
“Foi uma forma muito interessante de aproximar e potenciar competências”, sublinha Lisete Cordeiro, convicta de que a música e outras artes “podem ser um instrumento de inclusão e um veículo de mudança”. Dado o impacto “muito positivo” do trabalho desenvolvido até à data com a comunidade cigana, nomeadamente com o Giro ó Bairro – que inclui também o apoio ao estudo e prática desportiva -, a Câmara de Leiria tenciona manter os apoios financeiros que tem atribuído.
Apoio para manter
Ao REGIÃO DE LEIRIA, Ana Valentim, vereadora do Desenvolvimento Social, destaca alguns resultados: “Conseguimos reduzir o absentismo escolar, as crianças já frequentam o pré-escolar e temos a mais -valia de ter uma casa no bairro que é quase um porto de abrigo” para os jovens.
Com o projeto “Il Trovatore”, abriu-se também a porta para intervir junto das famílias do bairro da Integração, e apesar de o apoio pontual do ACM terminar em dezembro, importa não “perder” o trabalho feito, defende.
Agora como então, o objetivo passa por valorizar também a cultura cigana e dar a conhecer como “é que a comunidade lida com o casamento, a família, o trabalho, as feiras, a proteção entre eles e o dia a dia, de forma artística”, explica Raquel Gomes, que sublinha aspetos “muito interessantes que nós devíamos aprender com eles”. Ao fim do dia, por exemplo, “os miúdos não estão em casa fechados, estão todos no bairro, cá fora, com uma fogueira, a conviver e a brincar. Têm também um sentido de família muito grande. Eles protegem-se muito, mesmo tendo os seus momentos de atritos”, acrescenta.
O projeto vai agora ser objeto de avaliação, adiantou por sua vez Marisa Horta, coordenadora do Núcleo de Apoio às Comunidades Ciganas no ACM no final da sessão da passada quinta-feira. Desta reteve, entre outros pontos, a relação entre crianças da comunidade cigana e não cigana, que têm aqui “a oportunidade de cantarem juntos com o mesmo fim, e viverem a dança e a música, independentemente da sua cultura”.
(Reportagem publicada na edição de 15 de novembro de 2018)
Em abril de 2016, o Dia Internacional do Cigano foi assinalado com uma festa no Bairro da Cova das Faias, freguesia de Santa Eufémia e Boa Vista (Leiria). Como manda a tradição cigana, a música e a dança não podiam faltar. Aos moradores do bairro, juntaram-se mais de uma centena de músicos da filarmónica e coro da Sociedade Artística Musical dos Pousos e dos Picolini Filarmónicos SAMP