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Cultura

Hirondino Pedro Duarte. Mergulhado na natureza e imune aos F-16

Das memórias e da relação com o avô e com a natureza, o pintor idealizou e construiu o próprio ateliê na Coucinheira, freguesia de Amor, Leiria.

Das memórias do avô moleiro e da necessidade de estar perto da natureza, Hirondino Pedro Duarte construiu uma casa num antigo terreno desabitado e coberto de silvas, escolhido por razões assumidamente afetivas.

Com a casa nasceu o ateliê. As referências à arquitetura popular da região dão ao conjunto um ar de reconstrução. Mas tudo nasceu há 26 anos da cabeça e das mãos, do sonho e do suor do pintor.

Hirondino recebe-nos com “guarda de honra” dos aviões da Base Aérea nº 5, que está ali bem perto da Coucinheira. Naquele lugar da freguesia de Amor, no concelho de Leiria, muitos sonham com o aeroporto civil. Para ele é o pesadelo: já nem dá pela ensurdecedora passagem dos caças, mas aquilo interfere com a sua conceção de qualidade de vida. “Isto é prejudicial para as pessoas e provoca rachas nas estruturas. Não têm noção”, desabafa, sob o voo rasante de mais um F-16.

Bem mais simpática do que a dos aviões, é a companhia do cão Spike e de uma atrevida cabra, que passeiam no jardim. Os animais invadem o ateliê livremente, em comunhão com telas e tintas. Afinal, era essa a ideia original de Hirondino. “Aqui tenho liberdade para pintar, sem incomodar ninguém”.

A reforçar a poesia do lugar está uma generosa claraboia que remete para uma porta que existia na azenha do avô: “Quando abria, abria para o céu e isso era mágico”.

Ali, junto a um caminho secundário da Coucinheira, recriou esse mundo do avô, uma poética familiar e muito particular que se reflete na pintura de Hirondino. “Eu já estava interessado em pintar natureza quando vim para aqui e muitos dos temas que hoje continuo a pintar são diretamente relacionados e inspirados na natureza. Construí o espaço já com esse propósito”. E é nítida, no seu trabalho, a inspiração nos motivos e cores que o rodeiam.

Este espaço de trabalho é hoje muito maior do que o primeiro ateliê do pintor. “Era em casa dos meus pais, feito pelo meu pai, e tinha talvez talvez um quarto do espaço deste”.

As aguarelas, que pedem mais resguardo, são feitas na casa. O ateliê é reservado aos óleos que nascem por vezes em jornadas contínuas de 12 horas de trabalho, acompanhadas quase sempre a jazz saído do gira-discos.

Mas a seleção musical depende do “grau de excitação necessário ao trabalho”. E para explicar melhor a ideia, Hirondino cita Júlio Pomar, que dizia que “havia a [pintura da] ponta dos dedos, a pintura do pulso, a pintura do cotovelo e a pintura do corpo”.

“Há a [pintura] minuciosa, outra com algum gesto, outra com um gesto maior mas a pintura do corpo é o corpo todo e aí é preciso estar bem e motivado para se conseguir pintar”. Aí vai à música buscar a energia necessária. “Não posso ter uma música muito excitante se estou a fazer qualquer coisa de pormenor. Mas se for qualquer coisa de gesto amplo, preciso de uma música que puxe mais por mim”. Mas também acontece, por vezes, só dar pelo gira-discos quando ele se cala.

Neste ateliê não se respira só pintura propriamente dita. Pontualmente junta ali amigos em pequenas festas, onde se bebe um copo e se discute. “Este também é um espaço para pensar aquilo que eu quero da pintura e aquilo que quero que seja a minha produção. E para pensar a própria noção de arte”.

Porque pintar é mais “criar de metáforas visuais para um pensamento” do que rasurar “superfícies decorativas”, Hirondino continua empenhado na “urgência de um novo olhar”: “Há um ataque à natureza e as crises que estamos a sofrer advêm de atitudes e pensamentos errados sobre isso”.

A conversa está perto do fim mas ainda há tempo para saber da exposição que prepara para maio, no Banco das Artes, em Leiria. “Chama-se ‘Casa comum’ e é feita por mim e pela Sílvia Patrício”.

O tema central é, naturalmente, “os olhares que achamos que devemos ter sobre a natureza neste tempo”. De certa forma liga-se a “Casa dos sentidos”, outra exposição que desenvolveu no Banco de Portugal, em 2013. A casa, sublinha, surge sempre “como metáfora do lugar onde habitamos”.

Mas a natureza está à coca e também faz das suas: sorrateiramente, a cabra que passeava no jardim invade o ateliê e, num ápice, rouba um esboço do pintor a pastel. “Eiii!”, ainda grita Hirondino. Tarde demais: o desenho transformou-se em lanche caprino.

(Texto originalmente publicado na edição de 13 de fevereiro de 2020)


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