Provocações, agressões, castigos, isolamento, humilhações. Foram muitos anos de desumanidade, de 1934 até 27 de abril de 1974, aqueles que Peniche significou para milhares de pessoas – presos políticos em nome da ditadura. A cadeia instalada na Fortaleza era “local de sofrimento” e de “tremenda dureza”, recorda Álvaro Ribeiro Monteiro, um dos antigos reclusos entrevistados pela equipa do Museu Nacional da Resistência e Liberdade (MNRL).
Nas últimas semanas, no Facebook, o MNRL tem divulgado entrevistas com quem esteve preso nos espaços que agora formam o museu, que não é feito só de celas, pátios e grades: há também as memórias de quem viveu ali, vítima da ditadura. São esses testemunhos de resistência e coragem que estão a ser fixados.
O projeto “Histórias de Pessoas, Histórias de Resistência” arrancou em 2019 enquadrado na missão do MNRL, de preservar a memória histórica da Fortaleza, “em especial as lutas e resistência do povo português à ditadura fascista e na conquista da liberdade e democracia”, explica Rosalina Carmona, técnica superior da Direção Geral do Património Cultural e do MNRL.
Como muitos dos presos já não estão vivos, “impunha-se, com a maior brevidade, recolher aqueles testemunhos únicos”, registando-os para memória futura.
“Quisemos ouvir contar na primeira pessoa como foi o desespero de estar preso, quais os motivos da prisão, quanto tempo esteve detido, como isso afetou a vida pessoal de cada um e dos familiares”.
Durante anos, estes homens não puderam abraçar filhos, esposas, pais e amigos, viram a correspondência censurada, passaram por prisões como Caxias ou a delegação da PIDE no Porto e foram torturados. Mas também se organizavam no cárcere, comunicavam, passavam mensagens e imprensa clandestina, encontravam forma de passar o tempo. “Este era o universo que queríamos conhecer e divulgar”.
Desde o final de março foram partilhadas quatro entrevistas filmadas e mais se seguirão. Por ora, devido à pandemia, o MNRL interrompeu a recolha de depoimentos, mas a responsável garante que o projeto prosseguirá.
“Ainda existem muitas pessoas para ser entrevistadas”. E isso é importante, porque dar a conhecer as agruras e privações que passaram social, profissional, física e familiarmente, “apenas por pensar de modo diferente do regime em vigor na época”, é “um ato de cidadania e liberdade que pode contribuir para formar consciência crítica” e, sobretudo, “ajudar a evitar a repetição da História”.
Por outro lado, nota Rosalina Carmona, tem sido “muito gratificante” perceber dos antigos detidos que “o seu esforço e sacrifício em prol do bem coletivo valeu a pena. O museu é a prova viva desse reconhecimento”.
Para a técnica superior, o mais surpreendente é mesmo a “alegria de viver” que revelam nas entrevistas, a par da “confiança de que, no futuro, a ditadura seria derrotada e a liberdade e o fim da Guerra Colonial chegariam um dia”.
Mas este exercício não serve para o MNRL tirar conclusões: “Propomos que quem ouve possa formular uma opinião informada”. E há muitas reações de surpresa à realidade contada ao museu de Peniche.
“Os mais novos, sobretudo, desconheciam que em Portugal houve um tempo que não existia liberdade e as pessoas eram presas apenas por pensar de maneira diferente da oficial. Não se podia pensar diferente, ou sofria-se as consequências”, recorda Rosalina Carmona.
Daí a importância de lembrar o que era viver sem democracia ou liberdade, nota Álvaro Ribeiro Monteiro na entrevista que deu à equipa do museu.
“Quem por aqui passou, estes homens, deram um grande contributo para a libertação deste país. Mas a maior parte [das pessoas, hoje em dia] não lhes passa pela cabeça o quanto custou e já estão a querer voltar outra vez a princípios parecidos… “.