Quase todos os festivais de música em Portugal foram cancelados em 2020. Todos? Não. Em Alcobaça, a organização do Cistermúsica avançou e chegou ao final com todas as lotações esgotadas. Foram 1.450 espectadores em 15 espetáculos presenciais e 160 artistas envolvidos nesta edição do festival organizado pela Academia de Música de Alcobaça/Banda de Alcobaça. Um “motivo de orgulho, satisfação e de confiança para continuarmos”, explica o diretor do Cistermúsica, Rui Morais, em entrevista ao REGIÃO DE LEIRIA.
Demoraram muito tempo a confirmar a realização desta edição do Cistermúsica. Houve hesitações? Como foi esse processo?
A partir do momento que verificámos que a situação epidemiológica em Alcobaça estava estabilizada, da nossa parte não houve grandes hesitações. Mas confesso que do ponto de vista local, por um lado, e depois ao nível das autorizações, dos pareceres que obrigatoriamente tínhamos de ter – quer da direção local de saúde quer sobretudo da Direção Geral do Património Cultural (DGPC), por termos decidido concentrar ainda mais o festival no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça – aí demorou um pouco de tempo. Se do ponto de vista da DGPC existe um protocolo de parceria e a direção do Mosteiro estava completamente alinhada com o objetivo de manter o festival, a verdade é que depois as autorizações em Lisboa, a análise de toda a situação num contexto muito particular – o nosso festival dos raríssimos que aconteceu – demorou bastante tempo. Quer a programação quer o calendário foi sofrendo sucessivos adiamentos, razão pela qual acabámos por realizá-lo muito mais tarde do que temos feito nos últimos anos.
O que fez a organização manter esta edição?
Tivemos uma posição um pouco diferente de outros promotores. Mas não foi por teimosia. O Cistermúsica, por natureza, era um festival que se adequava bem a todas estas regras, porque se realiza em muitos espaços ao ar livre, para um tipo de público respeitador, com plateias sentadas. É um festival de música clássica e, desse ponto de vista, é um festival de nicho e não congrega milhares e milhares de pessoas. Foi realmente surpreendente: estávamos preparados para ter algumas opiniões negativas, porque temos de respeitar quem pensa diferente de nós, mas não tivemos uma única crítica negativa, não só de quem veio, mas mesmo de quem não veio – e isso surpreendeu-nos.
“O nosso receio era que, no fim disto tudo, tivéssemos menos pessoas a assistir do que em palco“
Rui Morais, diretor do Cistermúsica
Houve pressões para não fazer o festival?
Não fomos propriamente pressionados para não fazer. Mas a verdade é que, sobretudo ao nível do diálogo com o município – que foi, aliás, a entidade que fez nascer este festival – havia a vontade de que a cultura só regressasse em outubro. A programação cultural do município só começará a partir de outubro. Mas, quando apresentámos todo o plano de segurança, muito detalhado, com todas as plateias bem definidas, com a redução das mesmas, com a questão da obrigatoriedade das máscaras praticamente em todos os concertos – mesmo alguns que se realizaram em espaço ao ar livre -, com todo o distanciamento social que tínhamos previsto, quer para artistas em palco quer para espectadores nas plateias, o próprio presidente da Câmara percebeu que havia condições para fazer o festival em segurança. Tendo partido de posições que podemos dizer que eram antagónicas no princípio, com respeito mútuo das posições de cada um, foi possível obter um consenso e realizar o festival.
Foi desgastante para a equipa organizar esta edição?
O Cistermúsica, dada a sua dimensão, é sempre muito desgastante. Este ano foi um desgaste diferente, no sentido em que, se por um lado tivemos pouco tempo para organizar tudo no período que mediou entre as autorizações das entidades todas e a data que tínhamos fixado para começar o festival – 22 de julho, o que nos obrigou a correr contra o tempo -, por outro todas estas regras deram-nos alguma estabilidade. Houve uma série de questões – como trabalhar com muito mais rigor nos acessos do público, a bilheteira exclusivamente online ou não termos materiais de divulgação em suporte físico – que nos facilitaram a vida. O Cistermúsica sempre se realizou com plateias sentadas – o que nos permitiu defender que teria sentido manter a realização do festival no verão – mas nunca tínhamos tido os lugares marcados, com um número, e tudo isso nos obrigou a mais organização mas facilitou a todos, quer nós enquanto produtores, quer o próprio público. O conhecimento atempado das regras e fez com que tudo corresse muito bem. Numa primeira fase o desgaste foi psicológico para perceber se havia condições ou não para realizar o festival e, depois, quando avançámos em definitivo, havia a incerteza se o público iria aderir ou não, dado o receio que as pessoas têm – e bem – perante a situação de pandemia que estamos a viver.
A resposta do público foi massiva.
Foi a grande surpresa que tivemos. Tínhamos a certeza que íamos fazer um festival com a qualidade habitual, tínhamos a certeza que íamos cumprir todas as regras e também tínhamos a certeza que o público que viesse iria compreender e respeitar escrupulosamente essas regras. O que não sabíamos nem ninguém sabia, era se, apesar de tudo isto, as pessoas iam aderir ou não. O nosso receio era que, no fim disto tudo, tivéssemos menos pessoas a assistir do que em palco, o que do ponto de vista artístico e para a imagem do festival era algo nada desejável.
…mas os concertos acabaram por esgotar todos.
Sim, rapidamente, depois de colocarmos os bilhetes à venda, percebemos que os concertos disponíveis esgotaram rapidamente e passadas umas duas semanas todos estavam esgotados. Percebemos que tinha sido uma aposta ganha. Ficámos muito contentes: além de mantermos 15 concertos presenciais num total de 19 produções, com grupos de referência, que tocaram aqui em Alcobaça depois do período de confinamento, as pessoas perceberam desde o início, pelos relatos do público anónimo que diziam que tudo estava impecável, sentimos num conjunto de pessoas de Alcobaça – que tinham muito receio de ir à rua quanto mais ir a um concerto – a confiança para vir ao festival. Esta foi também uma forma das pessoas darem um sinal, com a sua presença, de que é possível superar este contexto, que é possível ter confiança e continuar. A economia tem de continuar respeitando as regras, mas também a cultura e a música em particular no nosso caso têm de continuar, desde que tenhamos respeito pelo que estamos a viver e nos asseguremos que todas as regras são cumpridas.
Houve algum momento de tensão?
Havia o nervoso miudinho no primeiro concerto, para saber como as coisas iam decorrer na prática. Mas tudo acabou por correr bem e depois veio o segundo concerto e os concertos no palco principal da Cerca do Mosteiro e não houve nada de negativo a assinalar. Por todas estas razões foi uma edição muito, muito especial e um grande sucesso.
Com ou sem pandemia o Cistermúsica vai continuar, como prometeu no concerto final o diretor artístico André Cunha Leal?
Temos de ver como tudo isto evolui. A saúde está primeiro mas, à partida, se situação se mantiver estável ou se desaparecer, depois do que fez este ano, o Cistermúsica só tem razões para acreditar que continuará a fazer-se cada vez com mais sucesso. Mas não podemos afirmar perentoriamente que se vai realizar no próximo ano. Se existisse um surto comunitário, relativamente descontrolada em Alcobaça, não faríamos o festival. Não vamos fazer o festival só porque sim. Fizemos e faremos desde que, analisadas todas as condicionantes, tenhamos a convicção de que não vão advir da realização do festival quaisquer consequências negativas para a nossa comunidade.
Terminada a mais desafiante edição do Cistermúsica, que sabor fica?
Sim, foi uma das mais desafiantes de sempre, devido ao contexto que vivemos, mas também uma das mais saborosas de sempre por ter sido possível fazer o Cistermúsica: por um lado em segurança e, por outro, com grande sucesso, quer do ponto de vista artístico quer do ponto de vista da adesão do público. Estamos muito satisfeitos pela opção que tomámos e com força para continuar a manter a cultura bem viva aqui em Alcobaça.
Já preparam a próxima edição?
Parte considerável da programação que não foi possível realizar, como os grandes concertos sinfónicos, os grandes concertos de coros ou a presença de artistas internacionais, que foram adiados para o próximo ano. As medidas de segurança não permitiam acomodar uma 9ª Sinfonia de Beethoven. Mas admitimos fazer alguma coisa mais este ano, não necessariamente, libertando parte da programação da próxima edição, para permitir acrescentar novas ideias e novos artistas.
O festival pode ter extensões?
Admitimos fazer alguma coisa mais este ano, não necessariamente em Alcobaça, mas com toda a circulação em rede, que no ano passado levou o Cistermúsica a mais 15 concelhos. Este ano manteve-se em três concelhos, com três parceiros que quiseram dar esperança. Se a situação continuar relativamente estável e, sobretudo, se diminuir, talvez seja possível, com os parceiros aqui na região Oeste, programar os seus concertos ainda para este ano.
O que fica desta experiência de realizar um festival em pandemia?
Toda esta aprendizagem ajudará a realizar os espetáculos de escola [de Música de Alcobaça] com mais rigor e confiança. Mas mesmo para o Cistermúsica houve a nível de organização um crescimento a nível da produção que não vamos abandonar, mesmo que a pandemia desapareça. Tudo tem o seu lado positivo: o facto de termos de observar um conjunto de medidas que até então não eram obrigatórias, fez com que tenhamos percebido que faz sentido manter algumas delas. Por exemplo, a questão das plateias serem marcadas, permite que haja poucos improvisos e obriga o público a comprar com antecedência e a não aparecer em cima da hora do concerto, à espera que haja bilhetes. Quer para os festivais quer para as outras realidades da Banda de Alcobaça, há muitas ilações positivas que retirámos para produzir ainda melhor as nossa atividades e iniciativas culturais daqui em diante.