Bernardo, Bryan e Júlio aprimoraram-se para a ocasião. Não é todos os dias que há uma inauguração dentro da prisão – e muito menos a inauguração de um espaço inspirado em Mozart. Os três reclusos integraram o exclusivo grupo de convidados que assistiu, na fria sexta-feira de 8 de janeiro, ao primeiro dia oficial do Pavilhão Mozart – Centro de Artes Performativas.
“Este é com certeza um momento histórico”, frisou o responsável da iniciativa pública Portugal Inovação Social, uma das entidades que ajuda a realizar mais um sonho da Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP): criar no interior do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens (EPL-J) um espaço permanente de criação e exibição de arte, com sala para ensaios e concertos e área de produção. “Não sabemos sequer o alcance de quão histórico é e a quantas vidas vai tocar, hoje, fora de portas e para além do que imaginamos”, disse Filipe Almeida, no interior do Pavilhão Mozart, já depois da diretora da EPL-J, Joana Patuleia, ter retirado do portão o pano estampado com mulheres-mães, simbolicamente escolhido para desvendar a novidade que está no pavilhão da antiga encadernação.
À entrada, Paulo Lameiro avisou: “Isto não é uma sala de ensaios, é um mundo novo!”, exclamou o coordenador do projeto. Este mundo consiste numa sala pintada de branco, com pé direito alto e teto forrado a madeira. Há um pequeno palco e vasto equipamento para dar asas à alma que embala o Pavilhão Mozart: projetores, microfones, computadores, holofotes, muitas câmaras e, claro, gente para operar tudo aquilo.
“Este é com certeza um momento histórico”.
Filipe Almeida, Portugal Inovação Social
Mas mais do que toda a tecnologia, há a motivação. Pavilhão Mozart é forjado do espírito do projeto “Ópera na Prisão”, que a SAMP desenvolve ali desde 2014: “É uma ponte aberta para estarmos uns com os outros, para nos ajudarmos através da arte”, sintetizou Paulo Lameiro. Ao longo dos últimos anos, contudo, foi ficando gente pelo caminho devido às regras disciplinares da prisão, porque terminavam a pena, porque os familiares estavam longe ou pelas questões de segurança que impediam os elencos integrais de subir ao palco da Gulbenkian. A par do sucesso, ficava a mágoa por quem era excluído por uma qualquer razão. E, sendo este um projeto de inclusão pela arte, revelava-se contranatura nisso. Daí a SAMP ter imaginado um plano para ligar todos os que querem participar, na prisão e fora dela, ao vivo ou à distância.
Ainda numa versão seminal, o Pavilhão Mozart revelou esse potencial na semana passada. Para já não foi possível mergulhar na prometida realidade aumentada, mas já houve emoção. “Vamos ter um momento histórico!”, avisou a meio Paulo Lameiro. Numa das paredes laterais apareceu projetada a imagem de Joaquina com o pequeno Kevin, em direto de casa, na Amadora; e na outra parede surgiu o filho que está encarcerado na EPL-J. Tiago cantou uma música para a mãe e para o sobrinho, que “assistiram” na parede em frente, com os convidados ao meio, na plateia. Joaquina emocionou-se, Kevin dançou e também cantou com o tio, que pôde juntar-se à família através do software “Traction”, desenvolvido pela SAMP e várias entidades numa parceria internacional com o mesmo nome onde o Pavilhão Mozart é elemento central.
Ópera made in Leiria
Voltemos a Bernardo, Bryan e Júlio. Os três fazem parte do elenco da nova “Ópera na Prisão”. Mas esta é diferente: Mozart é só inspiração, porque esta está a ser ali preparada do zero, desde julho. “Na verdade estamos a criar três pequenas óperas, que vão ser apresentadas em junho de 2021, para preparar uma grande ópera que será apresentada em junho de 2022”, tanto na Fundação Gulbenkian como no EPL-J, precisou Paulo Lameiro.
“Não sei o que Leiria tem de tão diferente, porque efetivamente este projeto não é uma exceção. É uma comunidade de empreendedorismo nas várias medidas, da cultura a tantas outras. Temos de aprender com Leiria o que se passa aqui”.
Luís Jerónimo, Fundação Gulbenkian
“Estamos a aprender e espero que em 2022 seja um grande espetáculo”, desejou Bernardo, que já subiu ao palco da Gulbenkian para mostrar uma peça trabalhada dentro da prisão com o Leirena Teatro. “Sou um bocado tímido e aprendi a melhorar. Foi espetacular, uma experiência única”, com “300 pessoas a verem-nos”. Bryan também assumiu timidez: “É a primeira vez que estou num palco, desculpe qualquer coisa”, disse o brasileiro aos presentes, desejando que um dos amigos que está no Brasil entre na nova ópera através de “Traction”. O projeto permitirá ainda a Júlio tocar guitarra com o avô, que lhe ensinou o instrumento.
“Vamos poder ter a ensaiar nesta sala, e a participar, os amigos que estejam no Brasil, as mães que estejam em Paris ou as avós que estejam na Amadora”, explicou o coordenador do Pavilhão Mozart, levando o responsável de Portugal Inovação Social a considerar o EPL-J “uma referência mundial da inovação social”. “São ideias novas que vêm para baralhar um pouco o que existe”, mudando “as perspetivas de vida de todos nós, não só daqueles a quem dirigimos os nossos esforços, mas transformando a nossa própria vida”, vincou Filipe Almeida. Luís Jerónimo, da Fundação Gulbenkian, que apoia “Ópera na Prisão” desde o ano zero através da iniciativa PARTIS, também levou elogios para partilhar: “Não sei o que Leiria tem de tão diferente, porque efetivamente este projeto não é uma exceção. É uma comunidade de empreendedorismo nas várias medidas, da cultura a tantas outras. Temos de aprender com Leiria o que se passa aqui”.
O diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais relevou a existência de uma sala de espetáculos entre os estabelecimentos que superintende. “O que está aqui é fantástico. Está a começar e estamos todos com grandes expectativas”. E, lembrando um dos debates às Presidenciais, Rómulo Mateus enalteceu a iniciativa da SAMP, por contraste com a ideia de que os reclusos são “pessoas que não interessam à sociedade”: “Vão dizer-me que são teorias antigas. [Mas] Alguém ouviu o debate entre dois candidatos presidenciais em que um diz ao outro: ‘O senhor assinou para pôr bandidos lá fora!’? Afinal esta teoria de que há uns que não interessam, que são lixo, está aí nas ruas”, alertou.