A surpresa estava reservada para o fim do programa de dois dias de pertinente reflexão em Leiria: no último painel do Colóquio Diálogos Luso-Sefarditas, Henrique Leitão, especialista em história da ciência, deixou a sala perplexa: o “Almanach Perpetuum”, impresso em Leiria em 1496, relevante para os Descobrimentos e atualmente em exposição no Moinho do Papel, não será de Abraão Zacuto, como até agora se pensava, mas de José Vizinho.
“Na exposição [no Moinho do Papel] não está com total precisão o que se diz sobre o ‘Almanach Perpetuum”, avisou.
José Vizinho, judeu que viveu no final do século XV, terá pegado noutro livro de Zacuto, “A grande composição”, e “fez uma coisa estranha: das muitas, muitas tabelas, selecionou algumas e não usou o texto”. Mais do traduzir, como se pensava, Vizinho “escreveu ele próprio uns textos, um bocado de baixa qualidade”, frisou em Leiria Henrique Leitão, anotando “alguns erros” e “coisas que não são do nível de Zacuto”.
Acresce que “Zacuto nunca na vida se referiu ao ‘Almanach Perpetuum’”, o que para o presidente do departamento de História e Filosofia da Ciência da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, reforça as dúvidas:
“Todos os historiadores de astronomia, hoje, não acreditam que Zacuto tenha tido qualquer ligação ao ‘Almanach Perpetuum’. Não está ao nível de Zacuto”, reforçou, considerando que foi iniciativa de José Vizinho, que quis fazer “um livro para astrólogos, para fazer astrologia”, incluindo nele, contudo, “uma tabela muito importante, chamada ‘Tabela da declinação do Sol’, que foi usada por marinheiros nas navegações”.
O historiador Saul António Gomes reconheceu surpresa com a revelação. “Pela primeira vez vejo uma crítica diplomática à fonte”, disse, admitindo que possa ter havido apropriação, apesar da “muito veemente atribuição a Abraão Zacuto” no “Almanach”.
“Os cânones são claramente de Vizinho. É a opinião dos maiores especialistas em Zacuto”, retorquiu Henrique Leitão, salientando que “tudo isto tem uma grande margem especulativa” que os investigadores estão ainda “a tentar clarificar”. “Tudo isto são pontos de interrogação”, admitiu.
Colóquio “é para isto que serve, para criar inovação”
“Estes encontros servem para a partilha de investigação e de resultados – como acabámos de ver -, da sua atualização, e da sua valorização”, disse Saul António Gomes, no balanço final do colóquio, imediatamente a seguir à intervenção de Henrique Leitão.
O investigador e responsável pela organização do Colóquio Internacional Diálogos Luso-Sefarditas, notou que a terceira edição em Leiria debruçou-se mais sobre “as temporalidades dos cristãos-novos, menos na Idade Média e menos na contemporaneidade, ainda que tenha tocado ambas as épocas”.
Saul Gomes ficou satisfeito com as “linhas de inovação historiográfica e linhas de inovação de problemáticas”: “É para isto que serve, para criar inovação, trazer novidade”, frisou.
Em Leiria – e não só, porque todas as sessões foram transmitidas online e continuam acessíveis no Facebook do Museu de Leiria – assistiram-se a “avanços reais nos conhecimentos sobre questões e matérias – aquilo a que se pode chamar inovação em ciência e em história”.
Os estudos dedicados à herança luso-sefardita, ou mesmo ibero-sefardita, carecem da “revisitação das fontes”, estejam elas “em arquivos nos Pirinéus, em Roma ou aqui em Portugal”, num esforço de “ampliação das fontes de trabalho”, que se revela “de extrema dificuldade”:
“Ou porque estão em hebraico ou porque estão em latim ou porque efetivamente exigem conhecimentos tecnicamente muito elevados, para poderem ser traduzidas, interpretadas, traduzidas”, detalhou o historiador.
Ainda assim, o colóquio “avançou com ideias para o século XVI” e “inovou pela diversificação das perspetivas de análise”, ficando “muito claro” que “as especializações das elites cristãs-novas hispano-portuguesas, ou ibéricas em geral, se fizeram sentir nos séculos XVI, XVII e XVIII, na vida económica, do mercado e das finanças públicas, dos impostos, no financiamento da guerra, do comércio e dos estados e do destino histórico dos estados”.
“Fica também muito evidente a importância, esquecida para nós portuguesas, do legado científico [luso-sefardita] para a Europa, para o ocidente, e para o mundo na área da medicina, da farmacopeia, da matemática, da astronomia – que ainda é muito dialogante com a astrologia”, concluiu Saul António Gomes.