“Para compor, tudo o que é preciso fazer é lembrarmo-nos de uma melodia na qual mais ninguém pensou”, dizia Robert Schumann (1810-1856), reconhecido compositor e pianista alemão.
Em pleno século XXI, inovação e criatividade permanecem como ingredientes fundamentais para quem escreve música. Uma profissão alicerçada na inspiração mas que comporta dificuldades, desde logo a capacidade de fazer da composição um modo de vida.
No Dia Mundial da Composição, que se assinala hoje, 15 de janeiro, revelamos o percurso de quatro compositores da região de Leiria, pessoas que acumulam o privilégio da capacidade de fazer música, mas também sentem na pele as dificuldades, ou mesmo impossibilidade, de viver dessa arte.
Depois de André Barros, Bia Maria e Adelino Venâncio, descubra mais sobre o percurso e a inspiração de Daniel Bernardes.
Aos 9 anos escreveu a primeira peça. “Estava a tocar piano, a experimentar. Lembro-me de gostar muito da sonoridade e, para não me esquecer, fui escrever”. Quase 25 anos depois, desconhece onde anda essa composição germinal. Mas não nos admiremos com a precocidade de Daniel Bernardes para a composição: “O meu filho já bateu o meu ‘recorde’, porque já escreveu [música] aos 6 anos!”.
Genética à parte, Daniel Bernardes começou cedo e está embalado. É pianista, professor e, como compositor, não tem mãos a medir. São suas as bandas sonoras da série “A Espia” (RTP), dos filmes “Peregrinação”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e “Filme em forma de assim” (ainda por estrear)”, todos de João Botelho. Já trabalhou em teatro, num “Cimbelino”, de Shakespeare, encenado por António Pires para o Teatro do Bairro, e “Sweet Home Europa”, de João Pedro Mamede, para o Teatro D. Maria II. Entre vários discos e outros projetos, recentemente em Leiria lançou um CD (“Pastoral”, com o trompista Mickael Faustino e a soprano Rafaela Albuquerque) com a poesia de Rodrigues Lobo, a propósito dos 400 anos da morte do poeta.
“Gosto imenso – e cada vez mais! – de fazer um diálogo com outras artes, seja o cinema, a literatura ou a pintura”, conta Daniel, que chegou a compor jazz para um quadro de Salvador Dalí. Procura muito criar a partir de algo que não seja música e para isso procura uma “faísca”, algo que o faça reagir: “O pior que que pode acontecer a um compositor é a ‘página’ estar em branco”.
Para responder às encomendas, o compositor tem sobretudo em conta o elenco que vai interpretar a obra. “Se estiver a escrever para um instrumento, podemos ser apenas mais mais emocionais ou espontâneos; para uma orquestra sinfónica, toda a parte de engenharia condiciona”. Daniel recorre à comparação para facilitar o entendimento: “Escrever para um instrumento é pegar numa tela e pintar um quadro; para estruturas maiores como uma orquestra, é como planear um edifício”.
Naturalmente, o tempo de produção de uma peça musical varia também consoante o elenco a que se destina. “Regra geral tento acabar tudo na mesma sessão de trabalho, de uma assentada; nem paro para ir à casa de banho ou almoçar”. Para não interromper “a atmosfera criativa”.
Assumindo Arnold Schönberg como influência – “é brilhante e deixou muitos escritos, quase filosóficos, sobre o processo de composição” -, para Daniel Bernardes é fundamental sentir que o que está a compor “está vivo”:
“É essencial a música que estou a fazer estar a surpreender-me. Quando estou a escrever, não gosto de saber o que está a acontecer – gosto de ser o primeiro espectador daquela música”. Mas é um equilíbrio complicado: “Não podes tirar o ‘tapete’ a quem está a ouvir, mas não pode ser uma continuidade ‘choca’ nem pode soar a ‘chover no molhado'”.
Em cada encomenda tenta entregar no final a melhor versão de si mesmo. Por vezes isso implica muito tempo até começar a escrever. “Tem de haver um embrião emocional na relação com o som que vai espoletar tudo o que vem a seguir”.
Parece terreno fértil para frustrações, mas o pianista e compositor de Alcobaça nunca sofreu por isso: “Não é fácil dar uma obra por acabada, mas felizmente aconteceu sempre qualquer coisa que iniciasse o processo”. E quando falta a inspiração? “Se estiver desinspirado, vou tocar piano. Se estiver cansado para tocar piano, é como já disse noutra entrevista: pego na cana e vou à pesca [risos]”.
E como chegou Daniel até aqui? Depois daquela estreia aos 9 anos, com um primo, formou uma “uma espécie de banda” aos 12 anos e a partir daí nunca mais parou: embrenhou-se no mundo académico, primeiro no Orfeão de Leiria, depois por outras paragens em Portugal e no estrangeiro e, por volta dos 17 anos, teve uma experiência inesquecível: um workshop com Emmanuel Nunes. “Escrevi uma peça para a Orquestra Gulbenkian tocar. Foi uma primeira grande experiência… Ter uma orquestra daquelas a tocar a tua obra, é uma sensação!”. Pelo caminho, bebeu da experiência de uma das referências do país, Alberto Roque, e em 2011 recebeu a primeira encomenda.
“Há um dia em que começam a pagar para fazeres isso, que também é uma parte agradável”, brinca Daniel Bernardes. Foi um conterrâneo de Alcobaça, o tubista de projeção mundial Sérgio Carolino, que lhe depositou confiança e responsabilidade. De então para cá compôs imenso, mas não lhe peçam para apontar uma música preferida. “É como escolher um filho”.
Com múltiplas solicitações, Daniel é um daqueles casos raros em que, se desejasse, podia começar a dedicar-se quase em exclusivo à composição. Mas não quer. Desde logo, porque é uma profissão muito solitária; depois, porque tudo serve de estímulo e inspiração para escrever. “O contacto com as novas gerações [nas aulas] é super interessante, aprende-se imenso quando tens de explicar de forma mais sistemática”.
Acima de tudo, entre as vertentes que assume, a mais importante é a de performer: estar em cima do palco, a tocar piano, em contacto com o público e outros músicos é para já uma sensação imprescindível. Mesmo que assistir à estreia de uma peça escrita por si por uma big band “só se compara, quando corre tudo bem, ao nascimento de um filho!”.