O nazareno João Poupada é um dos cinco portugueses emigrados no Canadá que se qualificaram para os Jogos Olímpicos de Inverno Calgary, em 1988, na modalidade de bobsleigh, sem nunca terem tido um trenó próprio para competirem.
Além dele, António Reis, Jorge Magalhães, João Pires e Rogério Bernardes venceram a desconfiança inicial e, com investimento próprio, a ajuda da comunidade portuguesa de Toronto, tenacidade e muita preparação fizeram Portugal regressar aos Jogos de Inverno 36 anos depois da primeira participação.
João Poupada, hoje com 56 anos, então estudante de fisioterapia, jogador de futebol americano, saltador e velocista, admite que “no início não tinha a certeza se era a sério ou não”, só quando viu os bilhetes para o primeiro treino numa pista percebeu que sim.
Com recursos limitados, treinaram o sincronismo do arranque, impulso fundamental para a corrida, num trenó com rodas. Levaram “o treino muito a sério”, embora não nas condições ideais.
Aos sete anos disse ao pai que ia aos Jogos Olímpicos. Não imaginava que fosse no bobsleigh, que lhe proporcionou o “momento marcante” da entrada no estádio.
O funcionário da Pepsi, natural da Nazaré, não se enerva facilmente e estava habituado à pressão da competição, mas quando chamaram Portugal, pediu aos colegas que, se paralisasse, o empurrassem.
João Poupada, que perpetuou essa epopeia com uma tatuagem no braço, orgulha-se de terem “feito o melhor” e “não terem embaraçado os portugueses”.
António Reis, hoje com 65 anos, campeão de futebol americano, de remo e assessor político, apaixonou-se pelo dispendioso desporto. Não podia competir pelo Canadá, mas o técnico Joey Kilburn encorajou-o a tentar representar as cores lusas.
Foi convidado a participar na Taça do Mundo e arrastou o amigo Jorge Magalhães para a aventura, na qual foram recebidos como estranhos, mas não se saíram mal. “Primeiro, não estávamos mortos, depois, fomos bem-sucedidos”, recorda António Reis, atualmente consultor em marketing.
Foi então que o sonho ganhou asas: recrutou quatro estudantes, todos eles desportistas e com preparação física, mas sem experiência na modalidade, e em menos de um ano desenharam um plano de treino e competição para conseguirem estar em Calgary1988 a descer a alta velocidade uma pista de gelo estreita e sinuosa num trenó sobre lâminas.
Em Portugal, nem sequer havia federação e o Comité Olímpico de Portugal (COP) só reconhecia a equipa Bobsleigh Portugal se a federação internacional também o fizesse e vice-versa. Era uma ‘pescadinha de rabo na boca’, mas António Reis viajou no mesmo dia de Lisboa a Milão e, “com a boa vontade do COP”, a situação foi desbloqueada.
“Era um sonho, mas com uma viabilidade potencial”, salienta o mentor do projeto.
A comunidade emigrante fez jantares para angariar fundos, os familiares ajudaram, António deixou de trabalhar para se dedicar em exclusivo a esta aventura e partiram para Innsbruck, para a corrida de qualificação, com um trenó emprestado pela federação austríaca, um equipamento que António Reis descreve como “uma sucata”.
Nos primeiros dois dias de treino perceberam que tanto esforço seria em vão, porque os tempos não lhes permitiam a qualificação, quando as potências na modalidade tinham trenós construídos “como uns Fórmula 1”, mas um vendedor de bobsleigh foi ver a prova e acabaram por pedir emprestado o carro e o reboque à equipa australiana e partiram para Itália, à procura de um trenó mais competitivo.
Chegaram a Cortina d’Ampezzo de noite, não encontraram o vendedor em casa, procuraram-no até falarem com ele num café, acordaram a compra do equipamento, fizeram a viagem de regresso à Áustria de madrugada, tiveram um acidente pelo caminho e terminaram a noite a polir os patins, para entrarem em competição, onde melhoraram meio segundo.
“A nossa aventura é uma série de improbabilidades que acabaram bem. Parece que tudo se conjugou para que resultasse. Na sexta-feira, o projeto estava morto, no sábado, dia do meu aniversário, estava espantado, parecia que o ‘bob’ tinha motor. Nós nunca tínhamos conduzido um ‘bob’ novo ou de qualidade, competitivo”, conta o piloto.
No domingo, estavam “eufóricos”, depois de um apuramento “legitimamente conseguido, com comprometimento e esforço”, quando lhes apareceu o vendedor do trenó para cobrar o elevado valor, que eles não tinham como pagar. Mas a máquina mostrou ser fiável e foi com ela que Alberto do Mónaco, classificado atrás dos portugueses, se apresentou nos Jogos Olímpicos.
“Todos ficaram admirados com o atrevimento, a audácia, a arrogância, também a ingenuidade, de acharmos que íamos aos Jogos Olímpicos, mas ali já não éramos sonhadores idiotas, éramos sonhadores olímpicos”, salienta, à Lusa, António Reis, natural de Gaia.
Em Calgary, sentiram por todo o lado o “orgulho dos emigrantes portugueses”, que os receberam calorosamente. Na vila olímpica entusiasmaram-se ao verem de perto tanta ‘estrela’ de renome, mas em competição já tinham corrido com os melhores do circuito e estavam integrados no meio, onde a equipa jamaicana não foi tão bem recebida.
Um grupo que não corresponde “à caricatura” feita em filme. “Eram atletas competentes”, garante o piloto português.
Se na pista não se deixaram impressionar, sentiram-se esmagados “com o peso” da entrada no estádio, na cerimónia de abertura. António ressentia-se das botas apertadas, “o tempo parou”, sentiu náuseas e só pensava que não podia deixar cair a bandeira portuguesa que empunhava num “momento tão grande”.
Os portugueses desvalorizam o equipamento usado e não competitivo, alugado em Ontário, com que se apresentaram em Calgary1988, e o quarteto Reis/Poupada/Pires/Bernardes ficaria em 25.º entre 26 concorrentes, a dupla Reis/Poupada em 34.º entre 38 participantes e Magalhães e Pires capotaram e não terminaram.
“O milagre é que nós estávamos nos Jogos Olímpicos, não porque não merecíamos, mas porque fizemos muito mais do que o imaginado”, remata António Reis.