A mensagem de humanidade revelada pelo achado arqueológico “Menino do Lapedo” inspira a candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura 2027, que no sábado, dia 5, apresentou seis eixos que suportam o lema “Curar o comum”.
O coordenador da candidatura, Paulo Lameiro, lembrou que ainda decorre a competição, mas avançou que um dos trunfos principais de Leiria envolve o “Menino do Lapedo” – também conhecido por “Criança do Lapedo” -, um esqueleto com 29 mil anos, encontrado em 1998 no Abrigo do Lagar Velho, em Santa Eufémia, a dez quilómetros de Leiria.
A descoberta marcou a paleoantropologia internacional, por se tratar do primeiro enterramento Paleolítico escavado na Península Ibérica e porque a criança apresenta traços de ‘neandertal’ e de ‘homo sapiens’.
A possibilidade de hibridismo gerou forte discussão entre a comunidade científica.
“A grande mensagem que a ‘Criança do Lapedo’ nos traz é uma mensagem europeia para a humanidade. Não existe uma Europa de ‘sapiens’ que destruíram e que mataram ‘Neaderthalensis’. Coabitámos, criámos e procriámos juntos. Quem nos conta isto é uma criança, e conta-nos num ritual completamente inesperado!”, sublinhou Paulo Lameiro, admitindo que, no início da construção da candidatura, o assunto estava “completamente abandonado, recusado de forma até muito intensa”.
Mas “a história veio ter connosco”, reconheceu o coordenador, porque “vale a pena ser ouvida” e “pode ser importante para os outros”.
Em conjunto com os vestígios de dinossauros do Bairro, no concelho de Fátima, e da Lourinhã, e do “crânio da Aroeira”, encontrado em Torres Novas e que remete para “o primeiro homem no nosso território”, o “Menino do Lapedo” acentua “a ideia de tempo longo – ‘slow life, slow cities’ -, uma outra forma de habitarmos este espaço”, que é uma das motivações do projeto liderado por Leiria, de acordo com a candidatura.
Perante uma plateia constituída por agentes culturais, a Rede Cultura 2027, que agrupa 26 municípios, levantou no Museu de Leiria um pouco mais do véu do conteúdo do livro de candidatura, apresentado em novembro de 2021 e que será defendido a 9 de março.
Com o lema “Curar o comum”, o documento desenvolve-se segundo os eixos “Reconhecer”, “Religar”, “Tecer”, “Cuidar”, “Imaginar” e “Sustentar” e tem a ambição, segundo sublinhou Teresa Andresen, de “demonstrar à Europa que conseguimos construir aqui um espaço cultural comum. E que queremos fazê-lo com parceiros europeus”.
“Vamos ser Europa e colaborar com a Europa”, sublinhou a arquiteta paisagista, uma das responsáveis pela elaboração do livro.
Já Lígia Afonso, outra das autoras do documento, revelou que Leiria pretende “um novo modelo de governança para a cultura”, que passe por “políticas públicas de base territorial”.
“É uma das marcas fundamentais do projeto”, sublinhou a professora universitária, acrescentando que a candidatura tem “um programa aberto”, onde apenas as ideias estão definidas, sendo depois “desenvolvidas pelos agentes no território”.
É que após um longo processo de auscultação, referiu Lígia Afonso, concluiu-se que “o nosso lugar-comum são as práticas de excelência do território”.
“Não é preciso acrescentar nada, só tínhamos de mapear e organizar. Eles [agentes culturais] existem, têm capacidade inequívoca, são o ‘core’ da candidatura e só temos de trazer isto para o palco”, frisou.
As propostas de programação da candidatura serão construídas pelo território, notou Paulo Lameiro, juntando “quem decide com quem faz”, antecipou outra das autoras o livro de candidatura, Ana Bonifácio.
“Temos cá tudo”, acredita a arquiteta e artista plástica, respondendo a uma das questões que a candidatura requer.
“Temos a prática material – e temos a promessa de que não vamos construir infraestruturas novas, não se vai fazer ‘o pavilhão’ como se fez em tempos – e vamos trabalhar as preexistências e isso é tudo o que é público”, desde os espaços culturais convencionais, às praças, os coretos, as habitações particulares ou “os oito mil quilómetros de trilhos, desde Sicó a Montejunto, passando por Aire e Candeeiros, até às praias, transversalmente”, prosseguiu.
Outra preexistência do território é “um ADN de quem não fica sentado”, enalteceu Ana Bonifácio.
“Essa é a característica que é o nosso traço comum: o ADN de transformar o que temos”, concluiu, reforçando ainda confiança no projeto, depois de assumidas dúvidas iniciais: “Neste momento, nós não temos nevoeiro à nossa frente”.