Acompanha os trabalhos da ação de solidariedade que estão a decorrer no estádio, faz tradução para jornalistas ou técnicos da autarquia, esclarece dúvidas a compatriotas e encontra tempo para responder aos inúmeros pedidos de ajuda que lhe chegam pessoalmente ou por telefone. E são muitos. Constantemente.
Desde 24 de fevereiro que a vida de Yuliya Hryhoryeva, imigrante ucraniana a viver há 19 anos em Leiria, mudou radicalmente. Ainda assim, a porta-voz da comunidade ucraniana em Leiria recebe todos sempre com um sorriso. “Esta ajuda e a onda de solidariedade que se gerou por Portugal inteiro aquece o coração. Eu sempre soube que os portugueses são solidários, têm um coração enorme”, diz.
No dia em que o primeiro camião, com 20 toneladas de bens recolhidos em Leiria, saiu para a fronteira da Hungria com a Ucrânia, Yuliya Hryhoryeva confessa que é uma “esperança ainda maior” para que “esta loucura” chegue ao fim.
Os bens chegaram ao destino na passada segunda-feira e outros carregamentos devem seguir nos próximos dias.
Em sentido contrário, chegam refugiados. Não sabe quantos. O número altera todos os dias. E dá o seu exemplo: “Tenho família lá e, por agora, não querem sair, mas não sei o dia de amanhã. O meu irmão é frade e está num convento que ajuda os refugiados, também está na sua missão. Os meus pais são idosos e estão a 7 km da Polónia, com a função de ajudar quem precisa, os refugiados que não querem passar a fronteira e ficam no limite da fronteira da Ucrânia”.
O cessar-fogo e a criação de corredores humanitários são medidas que a responsável espera que aconteçam com maior regularidade. “A loucura tem que parar. [Esta guerra] é uma loucura autêntica. As decisões que a Rússia está a tomar, e tomou, são completamente erradas. Não consigo encaixar na minha cabeça como é que um país acha que tem direito de dizer ao outro como tem que viver, que presidente vai ter”, lamenta.
Medo e preocupação
Mayya Rud tem 49 anos e vive há 13 na cidade do Lis. Desde que a guerra começou, tem dormido pouco ou nada, sempre alerta para as notícias que passam na televisão. A terra natal, Vinnytsia, já foi alvo de ataques, mas Mayya não consegue imaginar bombas a destruir a beleza daquele local.
Conta que por lá “ainda não caíram bombas”, mas são vários os avisos de bombardeamento e, sempre que a tia, o primo, a mãe e o irmão ouvem os mesmos, “desligam as luzes” e ficam escondidos em casa, “como ratos debaixo de terra”, replica.
Os familiares explicam a Mayya que “ninguém vai trabalhar, não há pessoas na rua, é assustador”. Devido à guerra, a população anda “com depressões, enervada” e sem esperança, acrescenta.
A imigrante ucraniana gostava muito de ter a família cá, mas a mãe não quer sair. “Ela pergunta ‘para quê? Eu vou para Portugal para chorar. Não posso deixar o meu filho’”. É que o irmão de Mayya está impedido de abandonar o país devido a lei marcial. “Se morrermos, vamos morrer juntos”, dizem a Mayya, que preferia estar com eles, mas não pode, porque tem três filhos para cuidar.
Relativamente à invasão, considera Vladimir Putin “maluco, mentiroso e esquizofrénico” e tem pena dos jovens soldados russos que “nem sabem para o inferno que vão”.
Na ótica de Mayya, só existe uma forma de terminar a guerra: “juntarmo-nos todos – Ucrânia, América e Europa – e pôr Putin em tribunal, porque é um grande bandido, assassino”.
Também Karolina Sudacov deixou toda a família em Chernivtsi quando se mudou para Leiria, há quatro anos. As saudades são muitas e ultimamente têm-se intensificado, assim como a preocupação e o medo.
Explica ao REGIÃO DE LEIRIA que os familiares tiveram oportunidade de sair, antes da invasão, mas não quiseram. “Disseram que tinham de ficar a defender o país e não conseguem deixar o que construíram durante a vida inteira. Quem consegue sair tem muita coragem”, frisa.
O tio da jovem de 23 anos está numa base militar, naquela cidade, a defender o país, e a tia também trabalha no mesmo local.
Em Chernivtsi, ouvem-se, por vezes, sirenes a tocar e “andam lá russos a fazer cruzes/marcações nas estradas. Mas as pessoas começaram a pintar aquilo de preto e a meter terra por cima”, diz. O propósito das marcações, ninguém sabe, assume.
Além de temer pela vida dos parentes, Karolina tem pena das crianças que “nascem no metro” e morrem todos os dias ou ficam órfãs.
Em contraponto, sabe que não é só o país da Europa do leste que sofre, mas sim o “mundo inteiro”: Portugal, inclusive, “começa agora a sofrer com o aumento dos combustíveis”, exemplifica.
Para a jovem, esta guerra não é nova, já começou há oito anos, e é imperativo recordar esse contexto histórico para a entender. Argumenta ainda que o objetivo do presidente da Rússia é fazer “mais guerra”, criar “mais morte” e levar a Europa e a América a entrarem no conflito. “Acho que o Putin não quer a Ucrânia, quer a América ou a Europa, dado que ele não tem nada na Ucrânia que possa ser útil”.
A mesma preocupação e receio é experienciada por Tetiana Boichuk, que veio para terras lusas aos 14 anos, juntando-se à mãe, ao irmão e pai, deixando para trás a restante família. O progenitor voltaria a regressar à Ucrânia mais tarde, permanecendo por lá até hoje.
Atualmente, a família do lado paterno está na Polónia. Ficou apenas um primo na cidade de Ternopil, “que na altura não saiu e agora está arrependido”, porque “está na idade para combater e em vez de estar na casa dele, está escondido na casa da avó, numa aldeia ao lado, com medo que o levem para a tropa”, explica.
Já o pai, estava em Vinnytsia, mas com medo fugiu para Ternopil. Não consegue sair devido à lei marcial e não tem passaporte. “Foi ter com a minha tia para a aldeia, que é mais segura”.
Para a jovem de 27 anos, que vive no Bombarral, “é tudo muito criminoso e desumano por parte da Rússia”, mas defende que “há muita coisa por detrás” desta invasão e que o presidente ucraniano devia ter chegado a um acordo com Putin para evitar a morte de tantas pessoas.
E acrescenta: “a Rússia está a tentar apoderar-se de um país que não é deles, por causa do medo que têm da Ucrânia entrar para a União Europeia e para a NATO”. A Ucrânia, explana, “serve como um tampão divisório entre o mundo ocidental e a Rússia. Se entrar para alguns destes organismos, os americanos têm caminho livre para porem lá as armas apontadas à Rússia e isto é uma coisa muito perigosa para a segurança da Rússia”.
Ontem, quarta-feira, chegaram a Leiria 22 refugiados numa caravana humanitária e partiu um autocarro. Vai trazer 55 refugiados que estão já sinalizados na fronteira da Hungria.
Nos contactos diários que recebe, Yuliya Hryhoryeva partilha que os refugiados estão preocupados com o acolhimento, pois deixaram tudo, apenas com alguns documentos e uma mochila às costas, sem destino. “Estão preocupados e com medo de chegar e não ser acolhidos. Venham, vamos acolher todos, digo-lhes. Têm medo porque não têm documentos, não têm onde ficar. Nós estamos cá, a comunidade [ucraniana] é grande, os portugueses têm um coração enorme. Vamos ter muito trabalho, não vai ser fácil, mas vamos conseguir”, diz, com firmeza.
183
Os primeiros refugiados chegaram na semana passada à região. Ninguém sabe ao certo quantos já vieram, nem quantos podem vir. O número está permanentemente em atualização. Leiria tem 54 camas disponíveis no Centro de Acolhimento. Em Porto de Mós, há disponibilidade para 50 pessoas, mais uma que o número de cidadãos que Ourém se prepara para acompanhar. Na Batalha, o número avançado ronda as três dezenas.
Com Carolina Santos
(Notícia atualizada às 14h27 de 11 de março de 2022 com a correção da informação sobre a vinda de Tetiana Boichuk para Portugal)