Sete ícones inspirados nas técnicas de pintura medieval da Europa de Leste pontuaram as sete Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha em 2022. A proposta expositiva de Nelson Ferreira teve tão boa aceitação que o artista foi convidado a pensar um novo projeto para a galeria de arte criada no monumento, no início deste ano.
“Sugeri ao dr. Joaquim Ruivo [diretor do Mosteiro da Batalha] uma exposição que iria arrancar com o passado – os ícones – e depois fazer um ‘salto quântico’ para o futuro”. Ou seja, desenvolver uma técnica de pintura “que pertencesse ao futuro”, mesmo sem saber exatamente qual.
“Ele achou a ideia muito interessante e aí é que fiquei nervoso”, diz, divertido, o artista natural da Maceira, Leiria: tinha de concretizar – e não sabia como – uma proposta de “pintura do futuro”.
Recorrendo a uma sugestão do livro “Guia prático para a criatividade”, de Julia Cameron, foi escrevendo todos os dias três páginas com tudo o que lhe vinha à cabeça, ao acordar. “Quando reli, passados uns meses, estavam lá dezenas de ideias espetaculares, de que me tinha esquecido”.
A partir delas, idealizou pinturas que só se veem “à luz do telemóvel ou daqueles capacetes de mineiro”. Assim, Nelson Ferreira construiu – e continua a construir – uma coleção de obras que tem exibido em “Caligem”, patente até dia 23 de julho na galeria do Mosteiro da Batalha. “É uma exposição cheia de mistérios e segredos”, diz, meio a sério meio a brincar.
Sempre em mutação, a exposição começou com um conjunto de ícones de inspiração bizantina, “em choque” com essas obras “muito novas, muito futuristas”, pintadas à noite, no Mosteiro, e cujo aspeto é uma superfície aparentemente apenas cinzenta. Contudo, a cor é ativada pela lanterna do telemóvel.
“São pinturas feitas sem tinta, trabalham exclusivamente com a refração da luz na superfície do tecido”, revelando pormenores do monumento, numa “técnica muito expressionista”, para “contrastar com os ícones antigos”. Em “Caligem” – que significa nevoeiro denso – convivem “o passado e o futuro, ao mesmo tempo”.
No Mosteiro da Batalha, as reações têm sido contraditórias, conta o artista. “De todas as exposições que fiz, esta talvez seja a mais contraditória, porque o público que não acender o telemóvel, olha para aquilo, diz que deve ser arte contemporânea e que até eles fariam, e vão-se embora”. Já de quem liga a lanterna do telemóvel, “às vezes ouve-se um ‘ah!'”, ou, até, “como algumas que já vi – não muitas – há pessoas a chorar”.
É, portanto, “uma exposição contraditória”, porque ou não vê nada e não se reagem, porque a aparência “é um cinzento liso, quase”. “Mas, regra geral, há um certo hipnotismo e o que público me tem dito é que faz lembrar hologramas”, diz Nelson Ferreira.
O artista, já com um percurso relevante nas artes plásticas, admite que “Caligem” é “a exposição mais importante” que já realizou, sobretudo por razões “puramente emocionais”.
“Finalmente a minha família toda da zona de Leiria viu o que eu faço. Eles não conheciam: primos, primos distantes, tios… Eu estava sempre em Londres, eles sabiam que tinham um artista na família mas não conheciam as obras ao vivo”. No Mosteiro da Batalha juntou muitos familiares, inclusive “tios com 80 e tal anos que estiveram agarrados ao telemóvel, ali a todos hipnotizados”, a ver as pinturas. “Até vieram tios com 80 e tal anos, agarrados ao telemóvel, ali todos hipnotizados. “Consegui fazer com que pessoas que não ligavam muito à arte, gostassem desta exposição. Foi, por isso, a exposição mais importante que tive”.
O processo de criação será explicado ao público pelo próprio Nelson Ferreira no dia 22, a partir das 16 horas, na festa de encerramento.
Exposição em Cascais e nova técnica no design de interiores
Enquanto “Caligem” entra na reta final na galeria do Mosteiro da Batalha, Nelson Ferreira prepara já outros projetos. Os ícones neo-bizantinos que criou estão na exposição “Fogo, Água, Terra e Ar” até 1 de outubro no Museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Depois, essa coleção viaja para Itália, onde será exibida em Lucca, no norte da Toscana.
Já as pinturas contemporâneas que está a criar, a nova técnica está a ser adaptada para o desenvolvimento de trabalhos com gabinetes de design de interiores britânicos que trabalham com o Médio Oriente, avança o artista.
“Nesta exposição na Batalha quis que fosse para serem vistas com telemóvel, para ser interactivo, mas é possível que estas pinturas se vejam numa sala, com holofotes próprios, independentemente da nossa posição. A pintura vai-se transfigurando à medida que se viaja pela sala, sem ser necessário o telemóvel”, explica. Dessa forma pode haver mais mudanças de cor, e a pintura vai passando “de tons avermelhados, para tons esverdeados, para tons alaranjados, consoante o ângulo em que estamos na sala”. “Pode ser mesmo espetacular se for bem feito em termos de técnica de luz”, salienta.
“Uma doença a nível mundial” no ensino artístico
O percurso de Nelson Ferreira levou-o a especializar-se em técnicas de antigos mestres europeus.
Estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, mas assume-se “extremamente crítico da arte contemporânea”. “A culpa não é da Faculdade das Belas Artes de Lisboa, é uma doença a nível mundial, atenção: se formos para Nova Iorque é igual, se formos para Londres ainda pior. Basta amarrotar uma folha de papel, atirar para o chão e dizer que é uma escultura. E se calhar consegue-se um 19 ou um 20! As faculdades de belas artes são autêntica escolástica medieval. É só conversa”, atira.
Para aprender “a pintar mesmo e a desenhar”, o artista natural da Maceira procurou “estudar com mestres a sério”, porque “no ocidente não me ia safar: o ensino artístico está muito moribundo, já”.
“Comecei a estudar com mestres vivos, pessoas que são mesmo boas no que fazem e também viajei muito pelo mundo para isso mesmo”. Então viajou por outras culturas, “que não foram muito ocidentalizadas”, para aprender técnica de pintura. “Mas a sério, com culturas que têm tradições milenares que estão vivas”.
Foi para a Índia estudar miniatura mogol durante vários meses, esteve na Turquia a aprender marmoreado islâmico durante vários meses, aprendeu iconografia com mestres russos e egípcios, entre outros. “Houve uma série de estudos que fiz para me desligar, para me descolar, que recebi nas Belas Artes”.
Continuou estudos na Universidade Prince’s Foundation, e ganhou bolsa de doutoramento desta universidade devido aos seus trabalhos em iconografia.
Foi por duas vezes o artista convidado pela National Portrait Gallery, para ensinar técnicas de desenho do Renascimento, e também deu aulas na Saatchi Gallery, isto para além de ter trabalhado com o Banco da América, os gabinetes arquitetura KPF e Farrell’s, do Discovery Channel, Paramount Pictures e ter dado formação a artistas da Disney.
Em Portugal, Nelson Ferreira deu cursos no Museu Nacional de Arte Antiga, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, na Universidade Autónoma de Lisboa e na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. E já expôs no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, e no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto.