Um troço de via ladeada de construções com colunas, uma sepultura de incineração e centenas de fragmentos de estuques pintados foram encontrados nos mais recentes trabalhos arqueológicos realizados no Castelo de Leiria e no largo de São Pedro, revelando aquilo que se acreditar ser uma importante presença romana no morro onde hoje está a fortificação, até hoje quase desconhecida.
As descobertas foram apresentadas na segunda-feira, dia 2 de outubro, no “Workshop’23”, que juntou especialistas de diversas áreas relacionadas com a arqueologia, e outras áreas que implicam o estudo do monumento, como geologia, engenharia civil e geofísica, para apresentarem e debaterem os mais recentes dados sobre o sítio arqueológico.
Já se sabia que o morro do Castelo tem ocupação humana há alguns milhares de anos. A arqueóloga Susana Cosme, que coordenou a intervenção no largo de São Pedro em 2021 e 2022, aponta para que, pelo menos desde a Idade do Bronze (há 3 mil anos até à chegada dos romanos), haja presença humana naquele sítio. Mas, admite, pode ser mais antiga, até porque foram encontrados vestígios do Paleolítico Superior (anteriores a 8 mil anos a.C). Mas, acrescentou na segunda-feira, será preciso escavar mais para confirmar.
O largo de São Pedro, esperava-se já, guardava um manancial para os arqueólogos. Nele foi encontrado espólio do Paleolítico Superior, Idade do Bronze, Idade do Ferro, e época romana, medieval e moderna.
O período de maior atividade, revelado por esta temporada de escavações, foi durante a Idade do Ferro (cerca de mil anos antes de Cristo), tendo sido encontrados vestígios de uma muralha, cabanas, lareiras, um possível forno e uma ânfora.
Foi na zona central do largo de São Pedro que surgiram vestígios da via em calçada romana, com um caneiro de drenagem de águas por baixo. Será do século I ou II e está acompanhada por muros de edifícios, incluindo alguns ligados à moagem e fiação, adiantou a investigadora. Pelo menos quatro mós foram encontradas, tendo sido reutilizadas para construção de colunas, também pelos romanos que ali habitaram e trabalharam.
Relevante é, também a sepultura de incineração romana, que está em estudo ainda, acrescentou Susana Cosme.
Também na Casa do Guarda, já dentro do que hoje é conhecido como o Castelo de Leiria – os limites são bem maiores – foi confirmada a presença romana, através da identificação “de um conjunto de estruturas parcelares, bastante destruídas – mas ainda assim é uma sorte terem sobrevivido”.
São diversos compartimentos, com vários alinhamentos, que se estendem até à porta da entrada, e “que talvez passem para a parte de fora”, mas será necessário mais trabalhos para o saber. Porque “todas estas estruturas estão cortadas pelas estruturas da atual muralha”, salientou a arqueóloga.
Também ali foram encontrados restos de um forno romano, mas “o que mais nos surpreendeu foi o nível significativo de estuques pintados, muito fragmentados”, ascendendo a centenas o número de fragmentos encontrados. “Seria muito interessante haver um tratamento mais pormenorizado destes vestígios”, comentou a investigadora.
Todo o material vai continuar a ser estudado, mas o que foi encontrado até agora “mostra que o edifício de época romana [situado na zona da Casa do Guarda] era um edifício significativo”.
A Casa do Guarda conserva igualmente, sob os vestígios da época romana, diversos vestígios da Idade do Bronze, “médio final”, como fundos de cabanas, um por cima de outro, com restos de fornos, tanto numa como noutra habitação. De um dos fundos de cabana resta meia lua: “O resto passaria para fora das muralhas”.
Desta época foi recolhida “uma quantidade enorme de espólio”, entre cerâmica, materiais em pedra e restos de animais, que está em estudo e que “merece grande interesse”.
Voltando ao largo de São Pedro, lá foi também encontrada uma moeda de ouro, um dinar almorávida, que suscitou curiosidade e várias questões.
Conhecida era também a função histórica do largo como necrópole e os trabalhos confirmaram-no. Foram identificados, nesta fase, 101 indivíduos enterrados, 96 dos quais foram escapados e cinco identificados. E foram encontrados 25 ossários, “com um número mínimo de 70 indivíduos”, aí enterrados desde a Idade Média à época contemporânea, notou a arqueóloga. “Era muita gente e pouco espaço e estavam literalmente uns em cima dos outros”.
Duas curiosidades, que encerram mistérios por explicar: dois dos enterramentos são de “indivíduos não europeus”, de época medieval – um deles do século XII; e uma sepultura guardava “quatro indivíduos atirados, literalmente, para lá”, revelou a arqueóloga.
São “um homem, duas mulheres e um indeterminado. É uma cronologia bastante mais recente e não parece fazer parte da necrópole, porque está dentro da área delimitada do Jardim dos Passos, o jardim do [antigo] Paço Episcopal”, acrescentou Susana Cosme.
Também os trabalhos arqueológicos motivados pela instalação dos acessos mecânicos ao Castelo trouxeram novidades. Junto à Sé a intervenção incluiu inclui a abertura da Porta de Todos os Males, relacionada com a lenda das “Três Portas da Sé de Leiria“. “Já foi escavada por alguém, não tem nada”, esclareceu prontamente o arqueólogo Miguel Almeida.
Nessa vertente do morro, as maiores surpresas prendem-se com os problemas de conservação. “Há problemas sérios em termos de conservação”, com “as questões de fissuração e deslocamento”, relacionadas “com um abacateiro no Jardim das Laranjeiras”, na PSP, apontou.
As principais descobertas surgiram, então, na vertente norte, onde foi encontrado um esqueleto “num deserto arqueológico”. Terá sido enterrado entre o ano 1000 e 1200, e estava ali ainda “não sabemos a fazer bem o quê”.
Também foi identificada uma muralha antiga, correspondente à Idade do Bronze final, que está sob a atual, e que tinha um percurso em seixos associado, “provavelmente um acesso ao castelo”.
“Não há ablações de terreno por OVNIS”
Ao longo do “Workshop’23”, a arqueóloga municipal, Vânia Carvalho, lembrou que “o Castelo precisa de obras há muitos anos”, recorrendo a uma citação do cronista-mor do reino, do tempo de Filipe II, frei António Brandão, que escreveu que o agora monumento nacional “já nesse tempo era uma antigualha a precisar de intervenção”.
“Diria que, agora, o descuido é menor. Pouco a pouco, paulatinamente, vamos tentando”, disse, elogiando as intervenções feitas para dar outras condições ao monumento que “nos trazem muita informação, que agora estamos a trabalhar”. Falta, contudo, “um estudo geológico sério”, a “manutenção das intervenções de monitorização do monumento” e “um Projeto de Investigação [Plurianual em Arqueologia]”, de análise dos resultados, algo “raramente feito em arqueologia, mas que está previsto na lei”.
Esse projeto justifica-se pela importância do sítio arqueológico, mas também porque, no morro do Castelo, “não há nada [encontrado] de Calcolítico [Idade do Cobre] decente” e, de igualmento, “não encontrámos islâmico bom nem romano verdadeiramente espetacular. Ficamos à espera dos estudos”.
Nos últimos 30 anos, sublinhou, “o monumento teve a sorte de ter tido executivos que permitiram que estas intervenções fossem para além do que a arqueologia preventiva obriga”. “Só isso torna possível falar de todas estas estruturas”, apresentadas ao longo de “Workshop’23”.
E a arqueóloga recordou um caso concreto, quando foi encontrado o troço de muralha da Idade do Bronze na vertente norte. A Câmara de Leiria “compreendeu a relevância da estrutura”, interrompeu a empreitada e teve abertura para “rever o projeto do acesso mecânico e alterar para não comprometer a muralhas”.
Vânia Carvalho notou que “o Castelo de Leiria não é a área visitável”, mas “uma área muitíssimo mais alargada, de toda a cerca muralhada e barbacãs, e essa tem uma ocupação humana, atual e essencialmente privada”.
“Não é possível intervir num monumento destes sem ter em conta o somatório das intervenções que aqui foram realizadas”, pelo que “não se pode intervir em propriedade privada – o Núcleo C -, sem ter em conta equipas que incluam escavações prévias óbvias. Não pode haver um acompanhamento de obra se alguma vez o edifício do Governo Civil entrar em obra”, avisou, a título de exemplo.
Porque, continuou, “não é possível meio morto não estar do outro lado da porta. Não é possível fazer intervenções em espaço particular, em obras particulares, sem ter em conta os resultados que os promotores públicos identificaram”.
“Não há, que eu saiba, ablações de terreno por OVNIS”, ironizou, sobre a ausência de dados arqueológicos noutras obras particulares realizadas no conjunto que constitui o Castelo de Leiria. “É necessário entender como é que esta informação não advém das intervenções com outros promotores. É necesssário questionarmo-nos sobre isto de modo muito sério”.
Da parte do município, assegurou, “não há má vontade” nem “nenhuma intenção de obliteração de património”.
“Tem é de haver noção de que estamos a falar um sítio arqueológico que não é um Castelo só. É uma realidade que pelo menos 3 mil anos contínuos de ocupação. Não é possível admitir que o sítio arqueológico mais relevante do município seja intervencionado de modo espartilhado”, concluiu.
Câmara quer projeto de investigação “mais profundo”
A vereadora da Cultura, Anabela Graça, que considerou na abertura de “Workshop’23”, o Castelo de Leiria “um elemento fundamental da memória e da identidade da cidade”, projetando-se como “monumento crucial da história da cidade e de Portugal” destacou, no final, a quantidade e qualidade da informação partilhada na conferência.
“Estamos perante um lugar que indicia ter muita relevância na antiguidade”, disse Anabela Graça na reunião do executivo da Câmara de segunda-feira, 2 de outubro.
Aí, a vereadora disse que o workshop contribuiu para se concluir da “necessidade de desenvolver um projeto de investigação integrado, mais profundo, mais sistemático, para melhor caracterizar a história do morro do castelo”.
Na sequência das situações de instabilidade relacionadas com o monumento, comunicadas durante as intervenções, o município de Leiria garante que irá “continuar a monitorizar a muralha”, estando a ser desencadeado “um novo procedimento para o efeito”.