Faltam dois anos e meio para a Cercilei completar 50 anos ao serviço das pessoas com deficiência nos concelhos de Leiria, Batalha e Porto de Mós. Um aniversário que gostaria de celebrar no novo lar residencial projetado para os Marrazes. “É uma urgência”, garante Cristina Meireles, presidente do conselho de administração da instituição.
O novo lar, a construir num terreno cedido pela Câmara de Leiria, nas traseiras da igreja de Marrazes, terá capacidade para receber 30 utentes e irá substituir o mais antigo lar da Cercilei. Instalado numa casa arrendada no Vale Sepal, este acolhe 12 utentes mas já não responde às exigências legais, refere a responsável. Já a unidade residencial de Amor conta com dez lugares.
Os pais têm colaborado ativamente nas campanhas de angariação de fundos para a construção do lar, um projeto que abraçaram de corpo e alma desde a primeira hora dada a importância desta valência para inúmeras famílias, face ao envelhecimento dos jovens e dos seus cuidadores.
Arlindo Fernandes confirma. “Até aos 18 anos, eu não dava tanta importância a esta questão como passei a dar a determinada altura, quando comecei a pensar: ‘espera aí, eu tenho 50, já tenho 60’, e ele ia tendo 30 e 40. Comecei então a olhar para a realidade e a pensar: ‘e depois?’”, conta ao REGIÃO DE LEIRIA, recordando a partilha de um outro pai aquando da atribuição do terreno para a construção da residencial.
“Foi das coisas mais marcantes que eu ouvi. O senhor Manuel Valentim disse o seguinte: ‘já posso morrer descansado’. É isso que eu sinto e é isso que os outros pais sentem”, confidencia, certo da solidariedade e adesão a esta causa por parte da comunidade, empresas e entidades públicas, a exemplo de iniciativas anteriores.
Eu estou há mais de 30 anos na Cercilei e nunca foi fácil. As conquistas e os resultados nunca foram fáceis. Exigem muito ao longo do tempo, e não me recordo de nenhum projeto que tenha sido conseguido de mão beijada. Numa primeira fase não havia projetos, os subsídios eram poucos e foi com a comunidade que nós fomos conseguindo pôr de pé as obras. Fazíamos por empreitadas, à medida que tínhamos dinheiro
Cristina Meireles
presidente do conselho de administração da Cercilei
Obra de peso
Com a escalada da inflação e o disparar dos preços do sector da construção, o orçamento inicial – cerca de 1,8 milhões de euros – quase duplicou, o que obrigará a instituição a recorrer à banca.
Segundo Cristina Meireles, as estimativas apontam agora para 3,2 milhões de euros, sendo que o Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais (PARES 3.0) deverá contribuir com um apoio financeiro na ordem de um milhão de euros, a Câmara de Leiria com 400 mil e a de Porto de Mós com 100 mil. A este bolo, somam-se 25 mil euros angariados nos últimos anos através de campanhas dinamizadas pela instituição e pelos pais.
O concurso já decorreu, estando a adjudicação dependente da decisão relativa a duas propostas concorrentes, o que deverá acontecer até ao final do ano.
Quanto à dimensão do projeto, e não obstante a existência de lista de espera, Cristina Meireles considera que 30 lugares é o ideal para garantir um ambiente familiar.
“Nós, conselho de administração, não comungamos da filosofia de grandes instalações. Já é difícil um lar com 30 pessoas funcionar como uma família, mas ainda é acolhedor. Se fosse um número maior, deixaria de se conseguir uma dinâmica de cariz familiar”, explica, deixando abertura para, em caso de necessidade de mais respostas no futuro, se avançar com um novo projeto em Porto de Mós ou na Batalha.
“A Cerci nunca pára”, sublinha, sendo disso exemplo o número de jovens que acompanha, a diversidade de atividades que promove e o acompanhamento individualizado prestado aos utentes.
Da intervenção precoce à formação profissional
São cerca de 600 as crianças e jovens que a Cercilei apoia, 70% dos quais no concelho de Leiria, 20% em Porto de Mós e 10% na Batalha, desde tenra idade.
Dos cerca de 100 colaboradores da instituição, 18 técnicos estão afetos ao Centro de Recursos para a Inclusão (CRI) e deslocam-se às escolas com medidas adicionais de apoio à aprendizagem e à inclusão, abrangendo alunos dos 6 aos 18 anos.
“O feedback que nós temos tido das escolas é que, de facto, somos uma parte importante no processo de integração e reabilitação desses alunos”, nota Cristina Meireles, que destaca, além das instalações dos Pinheiros (Leiria), onde funcionam a sede, o Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI) – antigo Centro de Atividades Ocupacionais (CAO) – e o Centro de Integração e Formação Socioprofissional (Cinform), o pólo intermunicipal de Porto de Mós e Batalha.
Enquanto esta unidade acompanha 30 utentes, o CACI de Leiria conta com 90 jovens, que são diariamente envolvidos e desafiados a participar em atividades que vão ao encontro dos seus hábitos, interesses e experiências, desde cerâmica e pintura, a atividades de vida diária, físicas e desportivas, informática adaptada, fisioterapia, hipoterapia, dança, estimulação sensorial, terapia ocupacional e apoio à lavandaria, jardinagem, copa e refeitório, entre outras.
Na altura em que eu me consciencializei que estava a ficar mais velho e comecei a pensar seriamente ‘e depois ?’, lembrei-me da minha filha, que é seis anos mais nova do que o Henrique, que tem 51 anos. A ansiedade é muito grande para que o lar aconteça. Nós andamos a fervilhar, todos nós, porque queremos que isto aconteça, porque precisamos que isto aconteça
Arlindo Fernandes
Pai de utente da Cercilei e membro do conselho de administração
Já a valência educacional integra cinco alunos em idade escolar com necessidades específicas, que não encontram nas escolas as respostas de que necessitam. Cristina Meireles realça neste âmbito a aposta na criação de uma sala Snoezelen, com benefícios evidentes em termos lúdico-terapêuticos para os jovens.
“Temos alguns recursos que se tenta adequar a cada caso”, esclarece a responsável, dando ainda conta do percurso trilhado por dezenas de jovens com capacidade para desempenhar uma atividade profissional.
“Temos 42 formandos na formação profissional, cinco dos quais em estágio, com vista à sua integração no mercado de trabalho”, refere a responsável. São quatro as ofertas formativas disponíveis, nomeadamente operador de jardinagem, serralharia civil, operador de acabamentos de madeira e mobiliário e assistente familiar e de apoio à comunidade, com várias oportunidades de saída profissional.
Cristina Meireles estima em cerca de 30 o número de formandos da Cercilei integrados ao longo dos anos no mercado de trabalho. “Nós, inclusivamente, temos jovens quase na idade da reforma”, afirma, recordando as primeiras integrações na Lizauto, na McDonald’s, no Jardim-Escola João de Deus e mesmo na Cercilei. “Quando têm um bom desempenho enquanto estagiários, as empresas acabam por ficar com eles”, reforça.
Caminho de inclusão
Desde a sua fundação, a 16 de julho de 1976, e dos primeiros passos dados na rua D. Carlos I, perto da Estação, a Cercilei tem contribuído para mudar mentalidades no que toca à deficiência, contra o estigma e o preconceito. Cristina Meireles destaca a importância da campanha do Pirilampo Mágico, mas também a participação dos jovens utentes da instituição em diversas atividades promovidas ao longo dos anos, como o Sarau de Atividades Corporais ou os Encontros na Diferença.
Ainda assim, persistem barreiras por derrubar. “Há pais que escondem os filhos [com deficiência]” quando “nós temos que aceitar a realidade e procurar o sítio ideal para que possam estar e evoluir”, admite Arlindo Fernandes.
“Infelizmente, há muitas pessoas que estão em casa porque não há capacidade de resposta, não há Cercis que cheguem para toda a gente, mas também há muitos que estão em casa porque os pais não se sentem à vontade por terem um filho com deficiência. Persiste um estigma”, nota, lamentando ainda a falta de apoio do Estado para garantir mais e melhores respostas às famílias.
Para Cristina Meireles, a criação das Cercis, a primeira das quais em Lisboa, decorre não só da Revolução de Abril e de um novo Estado social mas também “da movimentação dos pais, que, com a colaboração dos assistentes sociais, criaram as cooperativas” de norte a sul do país.
A responsável lamenta contudo o apoio insuficiente do Estado para obras. “Essa é a nossa revolta e mais revoltados ficamos quando as entidades valorizam muito o nosso trabalho, dizem que substituímos a função do Estado, que não devia ser necessário fazermos campanhas de angariação de fundos, mas depois também não avançam”.
Arlindo Fernandes subscreve, ele que encontrou na África do Sul, onde viveu durante anos logo após o 25 de Abril, um “apoio incondicional” e “abismal” por parte do Estado às famílias com crianças e jovens com deficiência. “O Estado tomava conta das suas responsabilidades, envolvia os pais e as direções das instituições, não era ele que as governava mas estava sempre presente”, recorda.
Às contas com o novo lar residencial
1,8 milhões de euros foi o orçamento inicial para a construção do lar da Cercilei
3,2 milhões é o valor estimado da obra, face ao aumento da inflação e preços do sector da construção
1,1 milhões de euros é o apoio a atribuir pelo Estado no âmbito do PARES a que se somam 400 mil euros concedidos pela Câmara de Leiria e 100 mil pela de Porto de Mós
7 mil euros é o encargo mensal que a Cercilei terá de assegurar nas próximas duas décadas relativo ao empréstimo bancário a contrair para a obra, comprometendo outras respostas e investimentos