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Sociedade

“Não é verdade que estes 50 anos tenham sido um desastre”

Todos os dados o comprovam: o pós-25 de Abril trouxe a Portugal conquistas notáveis em direitos sociais fundamentais. Mas há ameaças aos alicerces da democracia, como é o caso da falta de medidas para o problema demográfico e do culto do individualismo.

No Museu de Leiria, a jornalista Ana Isabel Costa moderou a conversa com Mariana Trigo Pereira, Manuel Carvalho da Silva e Gonçalo Saraiva Matias

Contra factos não há argumentos. Por isso, o presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), responsável pela base de dados Pordata, puxou por eles na conversa “Novos direitos e novas oportunidades do 25 de Abril”, que envolveu também o ex-líder da CGTP, Manuel Carvalho da Silva e a perita da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Mariana Trigo Pereira.

Numa bem cheia Sala do Capítulo do Museu de Leiria, Gonçalo Saraiva Matias chegou tarde mas logo pôs as cartas na mesa. Refletir sobre 50 anos do 25 de Abril “tem de ser um momento de realismo, de factos e de conhecimento da realidade”.

Ou seja: “Não é verdade que esteja tudo mal e que estes 50 anos tenham sido um desastre ou um fracasso”. Na comparação entre o Portugal de há 50 anos e o de hoje “há factos que saltam à vista”: a redução do analfabetismo “é enorme e claramente uma conquista”, de 26% para 3,1%; a mortalidade infantil – “o aspeto mais notável” – desceu de 55,5‰ (1970) para 2,4‰; a esperança de vida à nascença passou de 67 anos (1970) para 81 anos; e, na educação, “há uma evolução notável”, “acima da média europeia”, tanto no secundário como no ensino superior.

“São conquistas notáveis em direitos sociais fundamentais”.

A ameaça em Portugal é, hoje, sobretudo demográfica. “Problemas de países desenvolvidos e de países com riqueza. São bons problemas para se ter!”, frisou.

O mais preocupante é o envelhecimento da população, que resulta do aumento da esperança de vida – consequência da ação “do Serviço Nacional de Saúde e do acesso aos cuidados de saúde” -, e da baixa fecundidade.

O crescente envelhecimento da população cria “um problema de sustentabilidade da Segurança Social (SS)”. Segundo dados da FFMS, prevê-se que a população de Portugal em 2050 possa reduzir para 7,5 milhões a 8 milhões de pessoas, com consequências para SS.

Esse desafio demográfico tem duas soluções: “Nascer mais gente em Portugal do que a que morre – mas não há forma de inverter, a curto prazo, esta tendência”, e “a via migratória”. Os dados indicam “uma percentagem muito elevada de crianças que nascem em Portugal, filhos de mães estrangeiras” e o contributo importante dos imigrantes para a Segurança Social.

E sobre discursos que dizem que “Portugal está a ser invadido por estrangeiros”, o responsável da FFMS garante que “não é verdade”:

“Saíram 31 mil pessoas no ano passado, 80% jovens e mais de metade com o ensino superior, [mas] também é verdade que entraram em Portugal 118 mil pessoas em 2022, metade dos mais portugueses”.

“É possível haver uma política pública no sentido do retorno e com isso conseguirmos um episódio de fortalecimento demográfico e população”, apontou.

Nestes 50 anos de democracia, Gonçalo Saraiva Matias lamenta, sobretudo, que o país esteja a falhar nas políticas públicas para atacar problemas como o demográfico, “que podem pôr em risco o nosso Estado Social, o nosso modelo de desenvolvimento”.

A concretizar-se o pior cenário, será como “dizer que o nosso desenvolvimento levou à nossa queda”.

Carvalho da Silva: “Ao menos ouçamos o papa Francisco”

Antes, Manuel Carvalho da Silva, lembrou “o salto extraordinário” dado na educação em Portugal nos últimos 50 anos. “É uma conquista extraordinária, o cumprimento da escolaridade obrigatória, o número de licenciados que hoje conseguimos ter. Infelizmente estamos a exportá-los a custo zero, grande parte deles”, lamentou.

O histórico dirigente sindical considera, contudo, que “a juventude está credora em relação à qualidade do emprego, em relação à habitação. Não pode manter-se isto”.

O que também não pode continuar é a complacência para com a pobreza. “Os direitos sociais não são esmolas”, vincou, criticando o facto de Portugal ser “excessivamente condescendente com a pobreza. A probreza não é um problema dos pobres, é da sociedade toda”. 

“Ao menos ouçamos o papa Francisco”, pediu em Leiria Carvalho da Silva: “A solidaridade ou é transformadora ou não é solidariedade. Podem ser atos caritativos muito importantes num determinado momento, mas nós temos de ver a socidade de outra forma. Temos de tentar abrir horizontes que deem garantia às pessoas”. 

O antigo líder da CGTP vaticina que os futuros “orçamentos do Estado vão ter de conter condições para sustentar despesas que são permanentes. Dinheiro não falta, o problema são as opções que se tomam”.

Individualismo ataca os alicerces da democracia

Por seu lado, Mariana Trigo Pereira lembrou no Museu de Leiria que “uma das grandes conquistas de Abril é a posição das mulheres na sociedade”.

“Antes de 1974, um em cada três trabalhadores era mulher; neste momento ainda não é paritário, mas está mais próximo dos 50%”. Hoje, “as mulheres trabalham em pé de igualdade com os homens, estão no ensino superior até em maior número do que os homens” e, realçou, há uma evolução clara nas carreiras, com reflexos nas pensões.

A investigadora congratula-se com a inversão da disparidade nas pensões entre homens e mulhres. “Nas novas gerações, quando elas se reformarem, as mulheres vão ter pensões a par dos homens. Isso é uma boa notícia”. 

Com o 25 de Abril, Portugal deu “saltos de gigante” na área do trabalho. “Dos direitos fundamentais do trabalho, [antes] Portugal não cumpria praticamente nenhum”, lembrou.

Hoje, contudo, há várias ameaças, nomeadamente na área laboral, a especialidade tanto de Carvalho da Silva como de Mariana Trigo Pereira.

O sindicalista afastou nuvens negras sobre a SS, cujo orçamento “está mais positivo do que alguma vez teve”, o que se deve também à entrada de estrangeiros no país, acrescentou a perita da OIT:

“Estamos com uma imigração que é muito boa para a SS. Traz muita população ativa. Estamos com a população a envelhecer e vamos ter muitas pessoas a receber pensão e poucas a trabalhar e esta entrada de imigrantes tem sido muito boa para a SS”, explicou. 

Porém, entre todas as conquistas do pós-25 de Abril, um tema “preocupa muito” Mariana Trigo Pereira:

“Um dos maiores riscos é o individualismo, que se manifesta de diversas formas”, alertou.

Portugal tem “Estado Social porque acreditamos que coletivamente resolvemos melhor os nossos problemas do que cada um por si. E foi a força do coletivo que derrubou o regime, construiu instituições democráticas, desenvolveu o Estado Social, conseguimos este progresso partilhado”, recordou. 

Mas a especialista em trabalho vê crescer uma ameaça sobre essa construção que parecia ser algo garantido. “Um jovem hoje sai da escola, da universidade, e podem-lhe oferecer dois tipos de emprego -e ele vai escolher, provavelmente, aquele que lhe der maior rendimento disponível ao final do mês, no imediato. Até há uns pacotes que oferecem Netflix, Spotify, ginásio…”.

Desta forma, alertou Mariana Trigo Pereira, “perde-se a própria literacia da proteção social, que existe para nos acompanhar ao longo do ciclo de vida”. Com consequências para instituições como a SS ou o SNS, por exemplo.

“Nós contribuímos para estarmos protegidos ao longo do nosso ciclo de vida, das pessoas que vivem connosco, da nossa família, das pessoas mais velhas…”, reforçou. 

Para Manuel Carvalho da Silva está a ser lançada “uma armadilha – fina – para a qual a maioria das pessoas ainda não despertou”:

“Estamos a assistir a uma tentativa de substituição do conceito de salário pelo conceito ‘rendimento disponível por trabalhador’. Enquanto o salário, que resulta do compromisso plasmado em lei – nos Contratos Coletivos de Trabalho, por exemplo -, não pode ser reduzido, se forem prémios ou outras contrapartidas em substituição do salário, podem ser retirados”.

Parte desse rendimento não conta para as pensões e, “a qualquer momento invoca-se uma crise”, e suprimem-se com facilidade prémios e outros benefícios. “Isto é uma armadilha. Pode haver aqui retrocessos brutais”, avisou. 

Daí a importância de, 50 anos depois, continuar a celebrar a Revolução de Abril e as suas consequências. “O 25 de Abril tem de estar na escola”, defende Mariana Trigo Pereira, porque “este sentido de pertença, de comunidade (…) tem de ser passado aos jovens”.

Há dados objetivos, não é uma questão de esquerda ou direita. Facilmente se cai na onda das fake news e da desinformação e deixa de se valorizar as conquistas. O individualismo cria erosão dos alicerces da nossa democracia”, acentuou a investigadora. 

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