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“Se vamos deixar tudo como estava vai repetir-se esta tragédia”

Domingos Patacho não tem dúvidas: é elevado o risco de repetição de uma tragédia como a de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera. O coordenador do grupo de trabalho de florestas da Quercus e presidente do Núcleo Regional do Ribatejo e Estremadura da associação andou pelos concelhos a perceber como foi possível acontecer o mais mortal incêndio da história do país.

Durante quatro dias, o coordenador do grupo de trabalho de florestas da Quercus e presidente do Núcleo Regional do Ribatejo e Estremadura da associação andou em Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera a perceber como foi possível acontecer ali o mais mortal incêndio da história do país. Domingos Patacho diz que o risco de se repetir a tragédia do norte do distrito é elevado.

manuel.leiria@regiaodeleiria.pt

Como se explica a tragédia dos incêndios no norte do distrito?
Sabemos que existiu um fenómeno metereológico adverso, mas tem de se perceber o que existe no terreno. Isso ajuda a perceber o comportamento do fogo. Numa avaliação prévia, constata-se que cerca de 90% eram áreas de eucaliptal: centenas de hectares em continuidade, com algumas aldeias pelo meio. Em monocultura, é muito difícil travar os incêndios.

A culpa é do eucalipto?
Há muitos interesses instalados e há supostos especialistas que tentam dar a entender que o problema não é o eucalipto. O problema também tem a ver com o eucalipto, com a falta de ordenamento e de gestão da espécie dominante. O eucalipto é uma espécie originária dos antípodas, da Tasmânia, na Austrália. Tem óleos essênciais nas folhas. Quando há um incêndio e os eucaliptos começam a arder, libertam esses compostos inflamáveis, que as pessoas identificam como bolas de fogo. Todo aquele combustível a arder provocou uma intensidade de fogo muito elevada. Não é muito raro na Austrália, porque está cheio de eucaliptos. Cá, a grande novidade, mais do que a área ardida, é a tragédia humana.

Porque é que a monocultura é um problema?
Aquela região é denominada Pinhal Interior Norte e Pinhal Interior Sul mas pinhal era até há 30 anos. Em meados dos anos 80, cortaram os pinheiros e começaram a plantar mais eucaliptos. Tornou-se um grande eucaliptal em terreno de minifúndio. São centenas ou milhares de hectares de eucaliptos, mas cada propriedade terá em média um ou meio hectare. São eucaliptais que não são geridos e esse é o problema. Não existe ordenamento, não há distâncias aos caminhos, às estradas municipais, aos terrenos dos vizinhos… O proprietário não corta os matos de três em três anos, o combustível acumula e cresce e tem continuidade para a casca e copa do eucalipto. Quando começa o incêndio, torna-se muito difícil o combate direto.

Foi isso que permitiu o que aconteceu?
No dia 17 de junho estavam condições meteorológicas adversas, na ordem dos 42, 43 graus, humidade relativa quase zero e ventos típicos das trovoadas secas. Se existir um relâmpago e não houver chuva a seguir, o incêndio propaga-se rapidamente. Estas situações metereológicas, associadas ao fenómeno de downburst [corrente de ar descendente extremamente forte] – essa sim bastante rara -, provocaram uma rápida propagação do incêndio. Mesmo que existissem comunicações e a coordenação não tivesse falhas, era muito difícil, em poucos minutos, posicionarem-se meios para combater. Se estivessem bombeiros naquela estrada, morriam também. Não havia tempo de fuga e a intensidade do fogo era tanta, que era evitar ou fugir. Infelizmente houve pessoas que não conseguiram fugir.

Qual a origem do incêndio?
É essencial investigar, mas tenha ele começado com uma trovocada seca, com um pirómano ou numa fogueira por negligência, a tragédia seria idêntica. Havia desordenamento florestal e uma quantidade muito grande de combustível que fez com que a dimensão do fogo tomasse aquelas proporções. Queremos acreditar na PJ, que tem bastante experiência. Também já havia noutras aldeias alguns registos de fogo posto. Mas já vi a teoria que terá caído um fio elétrico… Parece que se anda a brincar com as pessoas! Não se pode tentar desviar a atenção do essencial: os danos que provocou o incêndio.

A discussão sobre a origem do fogo e a falha de comunicações é para desviar atenções?
Há muito ruído, o que não era usual. Normalmente só se falava dos incêndios no verão, e se tivessem grande dimensão. O problema dos incêndios é muito complexo, com variáveis sociológicas, ambientais, físicas, demográficas, em torno do abandono do mundo rural e do interior do país. A questão das comunicações é muito mais importante do que como é que começou o incêndio. Não podiam ter falhado. Um sistema que custou um dinheirão, não se consegue perceber… Já tinha falhado no incêndio do Sardoal no ano passado. Tem de haver uma reestruturação, não apenas com alguns diplomas legais. Se vamos deixar tudo na mesma, se vamos plantar eucaliptos até ao limite do terreno do vizinho tal e qual como estavam, daqui a uns anos vai repetir-se esta tragédia. Tem de haver ordenamento e o Estado tem de o promover. Se deixarmos para as empresas, fazem o que entenderem e temos problemas mais tarde.

Há menos incêndios nas florestas geridas pelas empresas produtoras de celulose?
É uma das questões do momento. É verdade que normalmente os eucaliptais geridos pelas empresas de celulose são melhor geridos. Têm alguns asseiros e normalmente os incêndios não começam nas áreas deles, mas em outros espaços florestais. Nestes 53 mil hectares queimados, as celuloses não vão dizer quantos eucaliptais deles é que arderam, mas arderam muitas centenas de hectares. Dizer que não arde não é verdade. Na semana passada o ex-primeiro ministro Passos Coelho disse que a espécie que arde menos é o eucalipto. Ele parece que não foi a Pedrógão Grande! O que ele diz é com base nas informações das empresas de celulose, que dizem que o eucalipto arde menos. Arde menos, mas nas áreas geridas por eles. A Altri e a Navigator [empresas produtoras de pasta de eucalipto] não têm em conjunto 200 mil hectares de eucalipto. Em Portugal estamos acima dos 900 mil hectares de eucalipto. Há 700 mil hectares de pequenos e médios proprietários e parte deles não faz a gestão do eucaliptal. Quando ardem e estão encostados a uma área de uma celulose, esses eucaliptos também ardem e ardem bem. Não vamos ser demagógicos e dizer que não ardem. Mas se for ordenado é diferente. A AFOCELCA [Associação de Empresas do Sector Papeleiro e Celulose] gasta 4 milhões de euros por ano para defesa e combate a incêndios nas áreas dele, com três helicópteros e homens especializados. O problema é que em dez anos não há gestão, há apenas o corte para tirar rendimento da madeira. Se as pessoas tivessem de investir para limpar de três em três anos, não dava rendimento e ainda abandonavam mais esses terrenos…

A Reforma das Floresta não é solução?
São alguns diplomas que vão no bom sentido, só que nasceram de uma reforma após os incêndios de agosto de 2016. Não foi uma coisa pensada a frio. Aprovar diplomas agora, a quente, pode ser contraproducente. Não quer dizer que não seja preciso, mas fazer leis e publicá-las em Diário da República em Lisboa é pouco. Se não há políticas públicas e de apoio aos proprietários e ao desenvolvimento rural e do interior, é muito difícil implementar estas leis. É preciso virem acompanhadas de medidas de financiamento para atividades mais sustentáveis do que propriamente plantações de grandes áreas em monocultura…

Está pessimista?
Está-se a ir no bom sentido, mas reforma pressupõe uma questão estrutural. Deviam ser medidas que mexessem com o território. O direito à propriedade privada está consagrada mas as pessoas têm que ter o mínimo de gestão do seu território ou de identificação das suas parcelas. Não podem estar anos e anos sem fazer nada ou sequer sem saber onde elas estão e quererem direitos absolutos. Enquanto isto não mudar, é difícil.

Quanto à biodiversidade: já têm uma ideia do que se perdeu?
Não temos ainda muito. Do ponto de vista da vegetação e arvoredo, há alguns casos interessantes, como aquela mata de carvalhos e salgueiros da Quinta da Fonte, em Figueiró dos Vinhos, que não ardeu. Foi uma área de floresta natural portuguesa, onde não houve combate ao fogo e resistiu melhor ao incêndio. Têm características intrínsecas, diferentes do eucalipto ou do pinheiro. Podem ser um exemplo de contenção, do porquê de usar mais espécieis resistentes ao fogo. No caso da fauna é muito mais difícil. No caso dos mamíferos ou outra fauna terrestre, grande parte dos animais morreram e não se consegue encontrar sequer os cadáveres. É um bocado dramático. A partir das zonas que não arderam vai haver uma lenta recolonização. No caso das aves, muitas fugiram, mas como o incêndio foi à noite, mesmo para elas é difícil. Há uma disrupção muito forte no ecossistema que faz com que vá ser difícil a recuperação.

Que riscos corre o território afetado?
Parte das cinzas colocadas nas encostas, decorrentes da queima da madeira e outros materiais, vai ser arrastada para as linhas de água. Em Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera há afluentes do rio Zêzere. Essas águas vão parar à albufeira de Castelo de Bode, que abastece cerca de de três milhões de pessoas na zona de Lisboa e Cascais. Ao ser arrastadas para a albufeira, vão provocar a degradação da qualidade da água. Mas ela será tratada e não haverá problemas por aí, embora o sistema não esteja previsto para este tipo de águas cinzentas. Há cautelas a ter. A própria ARS já alertou para que não se consuma água de poços. As emissões de dióxido de carbono e partículas também provocam problemas respiratórios foi muito grande. Tudo isto tem de fazer com que a socidade se mobilize para que o Governo altere o paradigma da nossa floresta, para não se repetirem estes erros. Arderem áreas de floresta parecia já normal: em 2013 perderam-se 425 mil hectares de floresta e morreram 21 pessoas. A partir daí algumas leis foram feitas e o sistema de combate a incêndios melhorou, mas já houve muitos incêndios depois disso, com áreas muito grandes. Parece que já é normal, mas não é normal de sete em sete anos haver incêndios tão grandes. É normal de existam fogos, mas não que provoquem incêndios tão grandes e tão destrutivos.

Há outras zonas na região em risco de acontecer algo semelhante?
Por exemplo, a zona norte do concelho de Ourém, que pega com Pombal e também com Leiria, na zona da Memória. Têm sido feitos trabalhos com asseiros e de gestão de combustíveis. Mas para além essas medidas, foram plantados mais eucaliptos e manteve-se a mesma estrutura de floresta que existia em 2005 e 2012. Qualquer dia vamos voltar a ter um problema. Infelizmente grande parte do território centro do país está nesta situação. Não é por acaso que arderam 53 mil hectares em seis concelhos… Havia aqui operacionais da Xunta da Galiza, unidades de emergência militar do estado espanhol, aviões espanhóis e marroquinos… Só podemos estar envergonhados. Fomos notícias no mundo inteiro. Os incêndios vão sempre ocorrer, porque no clima mediterrânico o fogo é um elemento natural. O problema é o número, a dimensão, a falta de gestão e ordenamento, que faz com que tenha uma dimensão ainda mais catastrófica.

O incêndio do norte do distrito aconteceu ainda na primavera. Prevê um verão complicado?
Em 2016 tivemos uma primavera chuvosa, em 2017 quase não choveu. No ano passado cresceram muitas ervas e matos. Este ano esses combustíveis estão muito secos… É uma luta inglória, mesmo para quem é profissional nesta área.

 

Tem de haver ordenamento e o Estado tem de o promover. Se deixarmos para as empresas, fazem o que entenderem e temos problemas mais tarde”

“Quando os eucaliptos começam a arder, libertam compostos inflamáveis que as pessoas identificam como bolas de fogo”

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