Fonseca e Cripta dão cartas no rap 100% Marinha Grande Foto: ML
Manuel Leiria
Jornalista
manuel.leiria@regiaodeleiria.pt
“Não me encaixo nesta sociedade porca/Falta-me um parafuso para muitos/Sabem que eu barafusto”. Fonseca é assim: sem rodeios, cru e direto. É rap feito na Marinha Grande para a Marinha Grande e para o mundo. Tudo começou por volta dos 13 anos: ouviu por acaso duas músicas de Sam The Kid e Microlândia na internet e “foi paixão”.
“Marcaram-me muito”, recorda João, hoje com 24 anos. A partir daí começou a escrever,“uma faixa aqui, outra faixa li” até que, em 2015, lançou uma mixtape e assumiu-se como Fonseca. O apelido dá nome ao rapper que tem dado cartas a brincar com palavras. Sobretudo desde que se juntou a Cripta, que produz, mistura e edita vídeos.
Juntos lançaram o EP “A um traço da loucura”, que terá continuidade em “Domínio do delírio”, já com um single lançado, em julho. São de “Punho cerrado” são as palavras do início do texto.
“Hoje em dia escrevo mais sobre a minha vida, a minha análise das situações”. Fonseca gosta de brincar com as palavras, misturando aspectos da sua vida pessoal com a revolta sobre o que o rodeia. “Tudo depende do estado de espírito”. Nas suas músicas há palavras bem duras, muitas a propósito da Marinha Grande.
“Gosto de espalhar o nome da minha cidade. Basicamente não se passa aqui nada e tento puxar a cidade para cima”. Nada escapa a Fonseca, nem questões como a droga e a violência. “Agora está melhor, mas são temas conhecidos, por isso é que os vou abordando”, explica o rapper, que assume o código postal 2430 como “imagem de marca”:
“Sinto a Marinha de uma maneira muito forte. Talvez porque os meus pais também já sentiam”.
O percurso da dupla Fonseca/Cripta tem sido lento mas sólido, com concertos em Lisboa, Porto, Leiria e Ourém e muita atenção do programa da especialidade, “Rimas e Batidas” da Antena 3.
Num tempo em que o hip hop está no top das preferências de quem ouve música online, Fonseca não tem como objetivo fazer do rap profissão. “Não me foco muito nisso, mas é claro que é um sonho”.
Continua a escrever nos intervalos e nas férias das oito horas de trabalho diárias na fábrica de aço, na Marinha Grande.
Sabe, contudo, que o sucesso pode surgir a qualquer momento. “Há um dia um som que atinge massas e a partir daí consegue construir-se uma carreira”. Mas recusa mudar o seu rap por causa disso e critica o facto do hip hop se estar a transformar no novo rock: “Claro que se vier algo e der para viver disso, melhor… É melhor do que acartar aço!”.
A Marinha Grande tem uma boa escola de rap, há muitos anos que se faz rap cá. Acho que tem a ver com ser uma cidade industrial. As pessoas andam descontentes e exprimem-se assim. Também é uma cidade onde sempre houve droga e criminalidade – sobretudo antes – e as coisas andam associadas.
“Punho cerrado” é o primeiro single do segundo EP de Fonseca e Cripta, “Domínio do delírio”, que vai ser lançado nos próximos tempos, com vídeos para cada uma das faixas. “É como se fosse a segunda parte de ‘A um traço da loucura'”, explica Fonseca, descrevendo a sonoridade do primeiro como “mais negra, mais depressiva”. “Domínio do delírio” será “mais de afirmação, de soluções. É uma fase em que a loucura já passou [risos]”.
“Acho péssimo que o hip hop se esteja a transformar no novo rock”
Vão longe os tempos áureos do hip hop da Marinha Grande e da região centro, diz Fonseca. Apesar da tradição na cidade, há pouca gente a trabalhar hoje em dia. “Somos nós os dois, o Jota e o Secta – que está para lançar um álbum – e uns putos que vão aparecendo, mas muito ‘verdes’ ainda. Está fraco”.
Longe vão os tempos de RESI2430, grupo que juntava rappers da Marinha Grande. “Cheguei a dar concertos com eles, mas era quase a mascote, porque era o mais novo”. Tudo acabou há meia dúzia de anos porque “o pessoal cresce, tem filhos, tem casa e o hip hop não dava dinheiro. Muitos acabaram por se cansar”. De todos, sobra o citado Secta, com quem Fonseca forma o coletivo Jack Limbo, de que fazem ainda parte Joka, Jota e dj Aquino. Em abril atuaram na Stereogun, em Leiria.
Mesmo em Leiria, Fonseca já viu melhores dias: “Relativamente ao que foi há uns anos, está fraco também. A maior parte dos rappers de Leiria emigraram para Londres”.
Apesar disso, quando atuam na Marinha Grande, Fonseca e Cripta juntam um número considerável de fãs. Num concerto na associação Comboio de Lata, apareceu tanta gente que até a polícia foi ver o que se passava, recordam, divertidos.
Os tempos são, de facto, outros. O cenário de quebra local contrasta com a tendência nacional e, principalmente, global. A indústria do hip hop desenvolveu-se bastante, numa mudança que Fonseca considera nem sempre apontar no caminho certo. “As pessoas gostam de ver o estilo de vida do artista, como veste, como é que ele isto e aquilo… Hoje é assim”.
O rapper da Marinha Grande assume que a popularização do hip hop o preocupa e até “choca um bocado”:
“Há coisas que não admito. Apesar de não ser muito velho, venho de outra escola. Na minha altura ser rapper era ser outsider da sociedade; hoje em dia, os putos de 14, 15 anos vão fazer rap exactamente pelo contrário: para serem aceites, conhecidos e famosos. Isso enerva um bocado. Mas acontece em quase todos os estilos…”.
Fonseca não tem dúvidas: “Acho péssimo que o hip hop se esteja a transformar no novo rock”, tendo até suplantado o antigo estilo líder de audiências nos tops de música online. “Mas nem tudo é mau… Isso abre portas a todos e permite-nos continuar”.