Há alguns verões que Laura Marques repete o ritual: deixa Leiria e Portugal e vai até os Alpes suíços guardar vacas. Dessa experiência e do projeto final para o mestrado em Antropologia – Culturas Visuais surgiu a ideia para “Vacas e rainhas”, filme que estreou no DocLisboa, onde recebeu a menção honrosa do júri da competição portuguesa e o Prémio Fundação Inatel. Laura falou ao REGIÃO DE LEIRIA sobre “Vacas e rainhas”, que ainda não tem data de exibição prevista em Leiria
Do que trata Vacas e Rainhas?
“Vacas e Rainhas” resulta de um dos verões em que tenho trabalhado como guardadora de vacas Herens nos Alpes suíços. Estas vacas são principalmente criadas para torneios nos quais a vencedora recebe o título de “Rainha”. Na sua origem, e em estado “natural”, os combates servem para definir posições na hierarquia da manada. O filme gravita em torno de questões de poder entre homens e outros animais, apoiando-se na minha experiência pessoal e, até certo ponto, na experiência das próprias vacas.
Como surgiu a ideia para o filme?
O filme resultou da conciliação entre o projecto final para o Mestrado em Antropologia-Culturas Visuais e o trabalho que fazia então durante o verão – guardar vacas. Entre os conceitos de “perspectivismo” de Eduardo Viveiros de Castro, a etnografia-multiespécies de S. Eben Kirksey e Stefan Helmreich ou a “etnoficção” de Jean Rouch, a teoria serviu para dar uma direcção mais concreta àquilo que ficou como “Vacas e Rainhas”.
Este é o seu primeiro filme. Como foi a experiência?
Foi bastante sui generis, no sentido em que tive que conciliar papéis relativamente antagónicos como o de pastora e o de realizadora. Se o primeiro tinha absoluta prioridade e exigia que fizesse de tudo para que nenhum incidente se passasse, o segundo ansiava por todas as falhas possíveis de controlo. Quando trabalhas com tantos seres vivos, é inevitável que algo aconteça. Qualquer coisa. E, se havia certos planos que queria filmar desde início, a maior parte surgiu de puro improviso e por reacção aos acontecimentos. Tive que aprender tudo de forma bastante autodidata, desde o filmar, à captação de som, à edição. Contei também com o apoio generoso e entusiasta das minhas orientadoras (Amélia Frazão Moreira e Hannah Parathian) perante este objecto meio bizarro no contexto da academia e da Antropologia em particular. Para além disso, e não menos importante, só pude terminar o filme com relativa qualidade porque tive a ajuda de muitos amigos: o Giorgio Gristina fez a pós-produção do som, o Ricardo Mesquita tratou da correcção de cor, a Raquel Pinto fez o grafismo e o António Repolho compôs e tocou as músicas do filme. Foi uma experiência de perseverança e amor.
O que significa a menção honrosa no DocLisboa?
Não quero de todo fazer a apologia do cinema do desenrasca. O financiamento, para um cinema o mais livre possível, tem que existir. Contudo, penso que tanto o júri da Competição Portuguesa como o do Prémio Fundação INATEL tiveram a sensibilidade para ir para acolher o olhar e o gesto deste filme com parcos recursos. E, como todos os prémios, são incentivos para continuar a fazer algo em que já acreditaste mais sozinho.
Como foi o feedback do público?
Foi muito caloroso. Penso que o humor e a ironia do filme tiveram bastante eco e isso foi maravilhoso. Tanto amigos, como desconhecidos ou membros da equipa do DocLisboa vieram falar comigo e estou muito grata por isso, por essa partilha.
Depois de “Vacas e Rainhas” tem outros projetos artísticos em mente?
Sim, sempre. Vou continuar a colaborar com o colectivo West Coast – que tem trabalhado com ecologia, performance e artes plásticas –, quero voltar a dar mais concertos de música improvisada e estou agora a preparar o projecto para um novo filme.
Laura Marques foi distinguida pelo júri do DocLisboa logo na estreia como realizadora. Recebeu ainda o Prémio Prática, Tradição e Património – Prémio Fundação Inatel para melhor filme de temática associada a práticas e tradições culturais e ao património imaterial da humanidade