Encontrei há dias Alves André que, para honra dos leirienses e sua, esculpiu a estátua do guarda-redes Rui Patrício, um dos melhores e mais dignos profissionais do mundo na “arte” que abraçou. Fui encontrar esse amigo algo perplexo, quiçá indignado. O caso não era para menos. Homem de boas contas, fiara-se em alguns dos mais altos responsáveis pela Câmara de Leiria, havia perdido tempo e dinheiro e desperdiçado talento num magnífico busto de Lemos Proença e, no fim, “estava a arder por inteiro”.
– O que se passa na tua cidade, que já nem me atendem? – Perguntou.
“Metido a martelo” naquela molhada, logo esclareci que, tal como ele, também eu havia bebido a “doutrina” em Cantanhede e não em Leiria. E que esta cidade não é diferente das outras, porque em todo o lado, e progressivamente, se dá o dito por não dito conforme as conveniências pessoais e as clientelas políticas. Para depois lhe prestar mais algumas explicações.
Privei de perto com Lemos Proença, um homem muito inteligente e afável, tecnicamente competente e singularmente correto no seu relacionamento com os demais, fosse qual fosse a sua condição social. E também deixei claro que ele havia gerido por muito tempo uma Câmara que não gastava no supérfluo, tinha uma dívida insignificante, desenvolvia obras de reconhecida utilidade, com ajustes que dificilmente poderiam cair sob a alçada da lei e com contratações de pessoal muito equilibradas face às necessidades, embora nem sempre as mais justas.
Em resumo, apesar de eu o ter enfrentado como raros o fizeram, e de o não considerar “perfeito”, só podia avaliar a Câmara dessa época como uma “casa” que procurava dar resposta aos autarcas, aos munícipes e aos investidores, sem gerar “grandes ondas”. Mas, também, que Lemos Proença sempre gozara da fama de se “abotoar”, facilitando a vida a certos empreendedores e assim obtendo prebendas.
Aprendi muito com Lemos Proença, um homem de quem não se conseguia ser inimigo: entre outras coisas, saber gerir crises políticas e obter consensos em matérias difíceis. Mas também dele ouvi alguns avisos úteis, entre eles o de que ninguém deve receber distinções a título definitivo, quando ainda em vida.
– Sabe… – Defendia ele, na sua enorme sabedoria. – Em qualquer altura pode aparecer qualquer coisa a manchar uma carreira pública. – E nem se coibia: – Olhem o que dizem de mim… Que tenho no Brasil isto e mais aquilo. Provem que não é fruto de dinheiro honesto.
Só baseado em rumores, sem a mínima prova, eu nunca o consegui confrontar. Sei, contudo, que com ele ao leme nunca a Câmara de Leiria teria cometido os erros a que depois assistimos: nunca teria feito disparar as taxas municipais, para se tornar no “polvo” empregador que hoje é; nunca teria enveredado por obras de fachada, como o estádio de futebol e outras de que se fala; nunca certos departamentos entrariam em autogestão, manipulando regulamentos, impondo medidas discricionárias, adiando decisões, aplicando coimas sem justificação e facilitando abertamente a vida a graúdos, enquanto ameaçam e levantam obstáculos aos pequenos.
Não sou pessoa de pôr facilmente as mãos no fogo pelos demais. Reconheço abertamente que algumas telenovelas em que Lemos Proença se envolveu, como as do Vale da Cabrita, ficaram na memória de muitos a acinzentar mandatos que hoje, vistos à distância, deveriam ser considerados esplendorosos. Mas, se é que “roubava”, sempre o fez com mestria e elegância, à maneira de Juscelino Kubitschek.
Alguns dos seus mais chegados amigos entenderam agora, depois de morto, prestar-lhe a homenagem que ele sempre recusou em vida, uma decisão que foi apadrinhada pela Câmara de Leiria. Para, logo a seguir, perante algumas reações e num momento político conturbado, a autarquia deixar o escultor Alves André a “arder”. Nunca, asseguro, Lemos Proença se portaria assim. Então, que deveremos nós fazer, sobretudo quando pretendemos dar lições de ética?
Transparente como água, e como antigamente se dizia nos casamentos, quem souber de alguma coisa contra Lemos Proença que fale agora ou se cale para sempre. Se alguma coisa de grave existe, que manche a sua carreira pública, é esta a altura de abrir a boca. Caso tal não aconteça, resta à Câmara de Leiria, como pessoa de bem, para além de pagar aos vivos em qualquer circunstância, saber honrar os seus mortos:
– Com ou sem homenagem, descansa em paz Presidente Afonso Lemos Proença!