Especialistas nacionais e internacionais participam esta quinta e sexta-feira, dia 16, no III Colóquio Internacional Diálogos Luso-Sefarditas, em Leiria, onde se discutirá a herança serfardita, “uma questão sempre presente na sociedade e na vida política portuguesa”, defende o historiador Saul António Gomes.
Durante dois dias, investigadores de universidades de França, Brasil, Espanha, Turquia, Suíça, Canadá e Portugal partilham e debatem visões sobre a história e a identidade cultural sefardita, relativa a descendentes dos judeus que viveram em Portugal antes da expulsão em 1496 e também dos cristãos-novos, em especial no mundo lusíada.
A intenção, sublinha a organização do colóquio em comunicado, é valorizar o conhecimento desse passado, tentando compreender o legado luso-sefardita no contexto atual.
O assunto está longe de ser tema ultrapassado, frisa o medievalista e investigador da Universidade de Coimbra, Saul António Gomes, que integra a comissão organizadora e que será um dos palestrantes: “A herança sefardita é uma questão sempre presente na sociedade e na vida política portuguesas contemporâneas como bem se demonstrou, ainda recentemente, com a questão da concessão da cidadania aos descendentes luso-sefarditas”..
Saul António Gomes nota que essa presença “deixou marcas em todos os continentes tocados pelos portugueses de há seiscentos e quinhentos anos atrás e desde então”, num efeito que “não se fecha apenas no passado”:
“É uma realidade presente e contemporânea de cujas heranças e continuidades todos somos também herdeiros e atores”.
Após as edições de Coimbra (2017) e Aveiro (2019), o desafio do colóquio em Leiria será procurar “o essencial de um património comum que tem no chão português um dos seus capítulos mais eloquentes”, ao mesmo tempo que na matéria entroncam “alguns dos desafios e problemas constantes na história do mundo”. Nomeadamente questões como “as das intolerâncias, das discriminações, dos racismos, dos totalitarismos, em última análise, dos valores e direitos humanos fundamentais da liberdade e da democracia”, frisa o investigador da Universidade de Coimbra.
Esse é um dos motivos para a realização em Leiria do III Colóquio Internacional Diálogos Luso-Sefarditas, diz a vice-presidente do município.
Anabela Graça deseja “o necessário debate contemporâneo em torno dos valores cívicos da tolerância, do respeito pela diferença religiosa e cultural e da democracia na sociedade contemporânea”, garantindo que “Leiria é um destes lugares”.
A herança sefardita em Leiria “é de tal forma potencialmente interessante” que, nota a autarca, justificou já “a criação de um equipamento municipal, integrado na Rede de Judiarias Portuguesas, que é o Centro de Diálogo Intercultural de Leiria (CDIL)”.
“A convivência intercultural é uma das imagens da identidade do município de Leiria, sendo que a permuta de experiências e de saberes está no cerne do empreendedorismo marcante e do permanente desenvolvimento. É este pluralismo social que sempre existiu em Leiria, em parcerias dialogantes, que justifica um CDIL”, onde estão representadas as três religiões do Livro: cristã, judaica e islâmica.
Ali, onde se encontra a Igreja da Misericórdia, que terá sido construída onde antes existiu uma sinagoga, numa zona da cidade próxima da antiga mouraria, a zona de Santo Estêvão, o CDIL é apresentado enquanto “agente de união e comunicação, como o contador de uma história emocionante, a de uma Leiria intercultural e dialogante”.
O programa abre quinta-feira, dia 15, no Teatro Miguel Franco, com conferência de Rica Amran, do Centre d’Etudes Hispaniques d’Amiens, Université de Picardie Jules Verne, França, desdobrando-se até sexta-feira pelo CDIL e Igreja de S. Pedro.
Na noite desta quinta-feira, às 21h30, na Igreja de São Pedro, há concerto de canções tradicionais sefarditas pelo contratenor João Paulo Ferreira.
Saul António Gomes: “A herança sefardita é uma questão sempre presente na sociedade e na vida política portuguesas contemporâneas”
O investigador e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, natural de Leiria, é um dos convidados do III Colóquio Internacional Diálogos Luso-Sefarditas e defende a pertinência do debate em torno de uma herança de que “todos somos também herdeiros e atores”.
Saul António Gomes, que integra a comissão organizadora, falará esta quinta-feira, no Teatro Miguel Franco, a partir das 16h30, sobre “Os primeiros cristãos-novos em Leiria e na sua região”.
Quais as expectativas para o III Colóquio Internacional Diálogos Luso-Sefarditas?
Este é um evento internacional que se dedica ao conhecimento, estudo e valorização de um passado luso-sefardita que se procura apreender e compreender no plano das realidades multiculturais, das convivências e das tensões sociais entre maiorias e minorias, da composição dos ideais e dos sentimentos de nação, de portugalidade… Não se foca apenas na história do outro, judeu sefardita ou não, porque a história desses outros é também a nossa história, uma história comum, carregada de encontros mas também de muitos desencontros e de diásporas globais. Estes colóquios, de que este é o terceiro (os dois anteriores aconteceram em Coimbra, em 2017, e em Aveiro, em 2019), privilegiam como territórios de realização cidades e lugares que não apenas Lisboa ou Porto; as perspetivas que apresentam, por outro lado, abrangem temáticas multidisciplinares que não se ficam apenas pela história social e económica, tocando também a história do pensamento e da filosofia, do Direito, da religiosidade, das ciências. Outros lugares do nosso país em que o património sefardita, como sucede na região centro e em especial na sua faixa litorânea atlântica, em que Leiria se insere, é uma herança que conta na atualidade e faz sentido no quadro da cidadania e dos valores culturais de comunidades com memória e com identidade.
Qual a importância de refletir e debater a história e identidade sefardita nos dias de hoje?
No corrente ano de 2021, Portugal tem vindo a assinalar os 200 anos do fim da Inquisição. Recordar esse acontecimento histórico contém tanto de reflexão sobre os porquês e os modos como esse tribunal foi possível, como de dívida de reconhecimento e de homenagem que as gerações atuais têm para com tantos milhares de vítimas que sofreram as prisões do Santo Ofício, as suas condenações à morte, e se viram discriminados socialmente pelo preconceito do “sangue infecto”. Tem importância refletir sobre esse passado nos dias de hoje? É relevante, em 2021, conhecer um pouco mais a história dos luso-sefarditas, dos judeo-cristãos ou cristãos-novos? Debater e refletir essa história sefardita é encontrar o essencial de um património comum que tem no chão português um dos seus capítulos mais eloquentes. Importa sempre recordar o passado. O estudo da história luso-sefardita importa enquanto área científica de investigação em si mesma, naturalmente, tanto mais que a História é um dos primeiros valores socioculturais dos portugueses, mas também enquanto assunto que incorpora alguns dos desafios e problemas constantes na história do mundo, nomeadamente questões como as das intolerâncias, das discriminações, dos racismos, dos totalitarismos, em última análise, dos valores e direitos humanos fundamentais da liberdade e da democracia.
A herança sefardita, presente em Leiria e em vários pontos do mundo, é um “filão” com potencial ainda por explorar?
O estudo do património sefardita, nas suas múltiplas expressões, atrai um número muito, muito significativo de investigadores em todo o mundo lusófono e ibero-americano. É uma temática global legitimamente apropriada por outras historiografias para além das de tradição euro-mediterrânica. A diáspora ibero-sefardita, em geral, e a luso-sefardita, mais particularmente, são territórios de investigação ainda como muito para desbravar e conhecer. Essa presença luso-sefardita deixou marcas em todos os continentes tocados pelos portugueses de há seiscentos e quinhentos anos atrás e desde então… Mas o sefardismo não se fecha apenas no passado porque é uma realidade presente e contemporânea de cujas heranças e continuidades todos somos também herdeiros e atores. Não é sem sentido que, em diversos municípios, especialmente nesta região em que Leiria se integra, se tem assistido à abertura de centros interpretativos e ao desencadear de atividades culturais no âmbito da temática luso-sefardita; não é sem significado, ainda, que a herança sefardita é uma questão sempre presente na sociedade e na vida política portuguesas contemporâneas como bem se demonstrou, ainda recentemente, com a questão da concessão da cidadania aos descendentes luso-sefarditas.