Nuno Rebocho ainda tem bem fresca na memória a imagem do comboio que chegava à fronteira entre Polónia e a Ucrânia. Lá dentro, centenas de ocupantes, com o olhar tatuado pela guerra e com a esperança de segurança após a fronteira.
Entre os ocupantes desse comboio que parecia sair de filmes a preto e branco de guerras passadas, vinham quase nove dezenas de pessoas – muitas delas crianças – que conseguiram fugir, após tentativas frustradas nas vésperas, de um bunker na cidade de Dnipro.
25 carrinhas, 75 voluntários, com mais quatro autocarros, entre os quais um do município do Fundão e um outro da Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria, tinham partido dias antes de Portugal. Agora, o cansaço, o planeamento, o empenho, direcionava-se para assegurar o resgate inesperado a um grupo desesperado.
A missão que saiu de Porto de Mós não contava com este grupo. Mas foi durante a viagem que surgiu o apelo para que fosse auxiliado. Primeiro tentariam a fuga pela fronteira da Roménia. Frustrada essa possibilidade, surgiu um cenário mais arriscado e remoto, de o grupo que se escondia num bunker, conseguir fugir via comboio, para a fronteira polaca. A mudança de planos obrigou a uma viagem extra de sete horas da comitiva lusa, até à fronteira, onde, apesar das dificuldades, o grupo de refugiados conseguiu chegar.
Uma vez são e salvo, novo problema: encontrar transporte de regresso para estes refugiados. A missão não estava desenhada para levar mais estas 88 pessoas. O aluguer de dois autocarros, na Polónia, foi a solução encontrada.
Este foi um dos episódios que mais marcaram Nuno Rebocho, numa missão de nove dias recheada de obstáculos, peripécias, surpresas e mostras de solidariedade. Entre encontrar transporte para refugiados com que não se contava, ou fazer seguir por avião famílias com elementos doentes e assegurar que tudo corria sem percalços, foi necessário um esforço imenso, reconhece.
Chegou no domingo de uma missão de nove dias, preenchidos por uma média de mil quilómetros percorridos por dia, para levar apoio humanitário até à fronteira da Ucrânia e para regressar, dia 20, com centenas de refugiados.
Ainda a recuperar do impacto físico de uma exigente missão de voluntariado, o presidente da Associação de Serviço e Socorro Voluntário de São Jorge deixa sair a confissão de que, se pudesse, voltava à fronteira.
Há um sentimento agridoce que combina a sensação de missão cumprida, que passou por contribuir para o resgate de cerca de três centenas de pessoas que fogem da guerra, com a impotência de saber de milhares, milhões, que ficam para trás.
“Chegámos domingo com o coração cheio, muitíssimo cansados”, refere. Os refugiados que resgataram, deixaram vidas para trás, trouxeram pouquíssima bagagem e “uma sensação de alívio muito grande”. Mas não só: também a preocupação pela incerteza quanto ao futuro, aponta Nuno Rebocho.
Entre os voluntários, sobra também uma sensação difícil de definir. “Nestes dois primeiros dias, não se consegue explicar, porque continuamos a ver as notícias e sabemos exatamente do que é que se trata, pois lidamos diretamente com uma realidade… sobretudo no que se refere às pessoas, que nos deixa impotentes”. E sim, “se pudesse voltava já”, confessa.
Quando a guerra eclodiu, recorda, o cenário de perigo humanitário que se avolumava nas notícias que chegavam, fez despertar a necessidade de ajudar. “A vontade de intervir foi imediata”.
Nuno Rebocho lidera a associação de Porto de Mós que casa o voluntariado e o socorro na sua designação. Em poucos dias, decidiu-se apontá-los a um país em guerra. Quando o Estado luso sinalizou a disponibilidade para receber refugiados, os contactos multiplicaram-se entre o grupo de voluntários, e a operação foi montada.
Sedeada em São Jorge, a instituição tem dado guarida institucional a outras missões humanitárias de uma rede alargada de voluntários que, no passado, têm desenvolvido missões de apoio a vários pontos do território africano.
A vontade era voltar imediatamente. Até porque ontem [segunda-feira] acordei com a informação de um bunker bombardeado em Dnipro, em que morreram mais de 200 pessoas. Será que era o bunker de onde vieram as pessoas que resgatámos? Estive duas horas e meia para perceber que não era. Mas era um outro, com outras pessoas. E vem a sensação: devíamos de ter trazido mais pessoas. Mas não podíamos”.
Nuno Rebocho , presidente da Associação de Serviço e Socorro Voluntário de São Jorge
Nuno Rebocho reconhece que essa experiência ajudou na componente logística da complexa operação de resgate nas fronteiras polaca e romena. Não havia, todavia, traquejo anterior para ajudar a suportar a responsabilidade de trazer centenas de pessoas de um país estrangeiro para Portugal.
No final, a missão humanitária ao coração da Europa em guerra, deixa contentamento: “sentimo-nos muito, muito contentes pelo resultado. Acho que foi realmente extraordinário”, reconhece. Afinal, explica, “foram quase 300 pessoas resgatadas, muitas delas crianças e todos ficaram devidamente instalados em Portugal”.
A missão foi voluntária, até do ponto de vista financeiro. Entre o esforço dos voluntários e da associação de São Jorge que Nuno Rebocho lidera, foram várias dezenas de milhares de euros despendidos na operação. Só em combustíveis, a fatura rondará os 50 mil euros. No rescaldo desta aventura humanitária, “estamos com algumas dificuldades de tesouraria”, admite Nuno Rebocho, acrescentando estar “convencido de que as pessoas vão ajudar” a associação.
Ex-autarca, bombeiro e voluntário
José Ferreira, com um currículo autárquico e de responsabilidades na estrutura nacional de bombeiros, também integrou o grupo de voluntários desta missão. Ao aproximar-se do destino, a caravana dividiu-se e o grupo que integrou rumou à fronteira romena com a Ucrânia. Lamenta as dificuldades dos refugiados que fogem da guerra e que, explica, durante a viagem passaram a apelidar de hóspedes. “Chegam traumatizados, sobretudo os mais idosos”, aponta.
Congratula-se, ainda assim, com as mostras de solidariedade que encontrou, e empatia que se gera quando a solidariedade humana está em jogo.
Nota, em concreto, as mostras de apoio de um comandante de bombeiros romeno, essencial para assegurar que a ajuda enviada – sobretudo de material médica – chegasse ao destino. Um elemento português na Cruz Vermelha romena em Siret, também se mostrou importante no auxílio ao esforço da comitiva. A componente da entrega de auxílio humanitário pode assim ser cumprida com tranquilidade, graças a esse apoio solidário.
Já a recolha dos refugiados – que o grupo apelidava de “hóspedes” – e que regressariam com a comitiva lusa, deveria decorrer como planeado: “nós tínhamos um levantamento das pessoas que íamos trazer para Portugal. Portanto o objetivo era trazer a 33 pessoas”, explica. Todos eles tinham “familiares em Portugal e, portanto, nós tínhamos contatos com as pessoas que nos diziam a que horas pensavam passar a fronteira, mas ainda assim era um processo demorado”, acrescenta.
No entanto, nem sempre tudo corre como planeado. A comitiva fez um desvio para recolher uma senhora que já tinha estado em Portugal mas que ao regressar à Ucrânia, foi apanhada pela guerra. “Foi com o filho à Ucrânia, porque ele fazia 18 anos e precisava de documentos definitivos. Começou a guerra e já não conseguiu sair”, conta.
“A senhora estava em Odessa no dia 4 de março e foi recolhida por nós no dia 15 de Março: à boleia, a pé, saiu de Odessa, passou pela Moldávia e chegou à Roménia onde foi recolhida por nós”, recorda.
O grupo em que José Ferreira estava integrado chegou no passado domingo. O antigo presidente da Câmara de Porto de Mós elogia ainda como a comunidade lusa em Ulm (Alemanha) providenciou guarida e refeições a toda a comitiva, num ápice. “Quando chegámos, todos os nossos ‘hóspedes’ já tinham as casas destinadas para pernoitar, toda a gente teve uma refeição quente e ao nosso grupo mandaram-nos para um hotel, suportaram essas despesas e ainda tínhamos, todos nós, uma cuvete com arroz de pato quente e uma cerveja”. “Foi um acolhimento espetacular”, enfatiza.
Foi a faceta de bombeiro do ex-autarca que o empurrou para esta ação que, admite, lhe deixou a satisfação pela missão cumprida, sem olhar a quem, a milhares de quilómetros de distância. “Foi a primeira vez que participei numa atividade destas e se for necessário não me importo de o voltar a fazer”.