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Leiria

Monumento resgata memórias dos tempos em que se prendia “por nada” e “até os mortos votavam”

Presos políticos e deputados da Assembleia Constituinte, de Leiria ou com ligações ao concelho, são lembrados

Monumento tem 245 nomes inscritos

Histórias de mortos que votaram em eleições de 1973, de bastonadas e detenções, mas também de luta pela liberdade e orgulho na democracia, resgataram-se das memórias nos discursos que marcaram o surgimento em Leiria, de um monumento que ostenta os nomes de homens e mulheres presos no concelho pelas polícias políticas do Estado Novo.

Ali, constam, igualmente, os primeiros deputados eleitos em democracia por Leiria: e que ajudaram a redigir a Constituição.

Presos políticos e deputados da Assembleia Constituinte – que depois da revolução, redigiu a Constituição democrática – de Leiria ou com ligações ao concelho, são lembrados no monumento, inaugurado na tarde de ontem, dia 24, no entroncamento entre as ruas Francelino Pimentel e Vasco da Gama, perto da Praça Rodrigues Lobo.

O memorial foi inaugurado há 25 horas, assinalando 50 anos do 25 de Abril. Entre a homenagem e a componente institucional, a cerimónia ficou marcada pelas memórias de vivências dos tempos do Estado Novo que ainda surpreendem.

É o caso do morto que terá votado em 1973, em eleições complementadas com bastonadas, na cidade vidreira. Álvaro Órfão, antigo deputado à constituinte, eleito pelo PS, partido pelo qual também liderou o município da Marinha Grande, recordou como a polícia distribuiu bastonadas entre a população nas eleições de 1973. E explicou como aí se registou o insólito caso que confirmava o rumor de que, durante o Estado Novo, até os mortos votavam.

Álvaro Órfão, deputado na Assembleia Constituinte

“Nesse dia aconteceu o insólito, que é comprovar uma das coisas que a oposição dizia: no tempo do Salazar, até os mortos votavam”. Foi graças a um funeral que passou na rua central da Marinha Grande enquanto se registavam cargas policiais que, contou Álvaro Órfão, ficou evidente a farsa eleitoral. “No momento em que passava esse funeral, um dos membros da mesa [de voto] que estava na montra a ver o espetáculo, disse para trás, para a mesa: ‘descarrega aí este vai a passar’”.

Quando o 25 de Abril chegou, relatou o antigo deputado e autarca, “o Dr. Rocha e Silva [Governador Civil de Leiria ] abriu as portas dos arquivos do Governo Civil e nós fomos com curiosidade ver quem é que tinha ou não votado. Para surpresa minha, eu tinha votado, o Vítor Dias tinha votado, o Rui Couceiro tinha votado, tínhamos estado a levar pancada da polícia e tínhamos votado”, relatou.

Álvaro Órfão adianta ter ficado apreensivo por nunca poder provar que não tinha votado. Contudo, ao consultar os cadernos eleitorais desse dia, conta, descobriu a prova que faltava: “O Dr. Anaquim votou. O Dr. Anaquim enterrou-se nesse dia e estava descarregado [nos cadernos eleitorais]”. “Fizemos a queixa desta mesa porque tínhamos uma prova. Um morto votou. O juiz aceitou a queixa”.

O caso nunca foi julgado por ter sido abrangido por uma amnistia por ocasião da promulgação da Constituição de 1976, revelou. “Nós somos a prova de que valeu a pena nestes 50 anos termos mantido o cravo vermelho bem no nosso peito e no nosso coração”, rematou.

Álvaro Órfão tomou a palavra, representando os deputados das constituinte eleitos por Leiria, alguns dos quais estiveram presentes.

Acácio de Sousa explicou os critérios que presidiram à criação do monumento

Acácio de Sousa, coordenador das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril em Leiria, sublinhou que “era importante marcar ou fixar para a memória futura aqueles que lutaram e arriscaram na luta pela liberdade e também aqueles que de alguma forma a confirmaram, que foram os deputados constituintes”.

O monumento, em jeito de memorial, conta com 245 nomes. O critério para os nomes inscritos consistiu em incluir “naturais de Leiria que foram presos ou pessoas que, não sendo naturais de Leiria, tiveram aqui algum desenvolvimento político na oposição de 1964”. Em suma, “pode eventualmente falhar aqui algum nome, quando estamos a falar em 200 e tal nomes, há sempre esse risco, mas os critérios foram estes”, explicou.

O facto de se tratar de um lugar de grande passagem e por, anteriormente, aí ter funcionado o Hotel Central, “que era um sítio de reunião, de jantares de oposição” e  ainda, por na altura, estarem na zona “instalados advogados que eram líderes de oposição”, determinou o local do memorial.

António Sales, presidente da Assembleia Municipal de Leiria, elogiou a iniciativa, lembrando que para “todos os que foram resistentes e constituintes, é a reparação da verdade e da história”. Há também, reforçou, “a reparação de muitas injustiças que foram cometidas, não só para os resistentes, mas muitas vezes para os familiares desses resistentes”.

O antigo governante e líder da AM de Leiria, lembrou que durante o Estado Novo a arbitrariedade era evidente e “as pessoas eram presas por nada”, dando como exemplo o caso de Leonor Baridó, da Marinha Grande, que, em 1973, foi detida por estar a rir dentro de um carro. “É importante que as novas gerações reconheçam e não se esqueçam desta comemoração”, enfatizou ainda.

Manuel Pereira, representante da URAP, União dos Resistentes Antifascistas, reforçou esta ideia, adiantando que a “democracia em Portugal cumpre os 50 anos” e que a “geração jovem e as seguintes, contra ventos e marés, têm de lhe dar continuidade, [pois] os cravos de Abril não podem murchar”.

Joaquim Vieira (ao centro), ladeado (da esquerda do leitor para a direita) por Jorge Pratas, Leonor Baridó e Maria Santos e Alberto Costa, todos antigos presos políticos

Joaquim Vieira, jornalista natural de Leiria e antigo preso político que esteve quase um ano e meio privado da liberdade, condenado em Tribunal Plenário, assegurou que “não me considerando uma figura, uma personagem, com um papel especial na Resistência, fiz a minha parte, gostava também de dizer que, se hoje acontecesse uma situação idêntica, eu estaria também disponível e pronto para continuar a Resistência, para voltar à Resistência”.

Essa é uma atitude que decorre de “valores que não desaparecem” e que, explicou, “eu tinha aprendido aqui, na cidade de Leiria”. Para o jornalista “há valores pelos quais vale a pena continuar a lutar”.

No seu entender, “há duas grandes ameaças: a guerra e as ameaças climáticas”. “Aí estão dois objetivos pelos quais é preciso continuar a lutar e é preciso mobilizar as gerações mais novas, todos no fundo, para isso”, exortou.

“Este é o Memorial da Coragem, da Luta, da Resistência, da Esperança, da Determinação, da Justiça, da Igualdade e da Liberdade. Este é o Memorial que temos de continuar a erguer todos os dias contra o ódio, o racismo, a xenofobia, um muro contra os inimigos de todas as liberdades e garantias”, afirmou Gonçalo Lopes, presidente da Câmara de Leiria no encerramento da cerimónia.

Ali, onde todos passam, na vizinhança do hotel onde a oposição reunia e conspirava contra o Estado Novo, ergue-se o monumento que recorda quem pagou com a liberdade a luta contra a ditadura e aqueles que ajudaram a escrever o texto fundamental da democracia atual.

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