A luz é o que nos deixa ver o mundo, a nós que não nascemos cegos, e tem a cor amarela ou alaranjada do sol, a riqueza suprema para a fertilidade da terra em que vivemos, e por isso se junta ao mar no horizonte do ocidente, quando se põe, e acorda a oriente. Sem sol e água, a terra, infértil, secaria. Claro que a lua também deve ter importância neste processo, bem como os outros planetas e a força gravitacional, a relatividade da matéria, os famosos buracos negros, o turbilhão de que nascem e morrem núcleos de meteoros, mas quase tudo ainda é desconhecido para nós, os minúsculos habitantes do verde planeta, onde tudo o que luz é oiro…
Um destes dias gloriosos de julho, depois da hora do pôr-do-sol, tive a sorte de ir acompanhar uma reconstituição da visita de William Beckford ao Mosteiro da Batalha, historicamente datada de 1794, guiada pelo grupo de teatro “O Nariz”, com criação de textos de Mourão. Os archotes dos frades davam luz suficiente para iluminar a noite e a espera do endinheirado aristocrata inglês, vindo do Mosteiro de Alcobaça, foi um prólogo perfeito para transformar os espectadores em fantasmas críticos de um tempo outro com um modus vitae semelhante ao de hoje: relatividade de valores e amarfanhamento da moral e da verdade em nome da acumulação e do fingimento.
Duzentos ou trezentos anos de nada valem na evolução do ser humano. Para uns a luz continuará a ser a quantidade de comida ou de vestuário, de joias, de carruagens, de visitas ao rei; para outros, a luz será qualidade semeada e protegida até e depois de brotar, nudez de corpo saudável sob estopa (linho, algodão, seda) cintado com cordel, iluminada com uma flor ou uma pedra do caminho, cintilante de simbolismo, honrado cavalgar no irmão cavalo ou montar no jumento teimoso, sem visitas de gente importante. A casa destes frades tanto pode ser a pedra imponente talhada como a tenda dos afetos, onde os reis se ajoelham quando a tempestade a todos, sem exceção, persegue.
Dominicanos ou franciscanos: para cada um de nós a vida gira à volta de almoços e jantares, visitas faustosas e viaturas de última geração ou de leituras entrecortadas por ervas arrancadas entre o que semeámos ou colheita dos frutos nas árvores herdadas dos antepassados, amigos sentados à nossa mesa que connosco caminham através de encruzilhadas inesperadas e de trilhos abertos com a resiliência da nossa tempestade interior. A luz do coração, o calor da vida pulsante intempestiva e determinada, aguerrida pelo corpo e espírito, urgentemente dependente do calor, da luz do sol é o oiro sem o qual sucumbiremos.
William Beckford viu a luz na delícia estética da pedra do Mosteiro da Batalha e nas celas estoicas de franciscanos decididos a, pragmaticamente, deixar a amizade e o amor semeados como um vírus contagiante. Essa é uma luz de oiro.
(texto publicado na edição de 31 de julho de 2014)