Lenta mas progressivamente nas duas ultimas décadas vamos assistindo a uma imposição burocrática para a normalização de quase todos os aspetos da nossa vida, desde a linguagem que usamos ao gosto que nos é socialmente permitido passando pelas correções que o presente impõe à arte e obra do passado.
Comecemos pela sua origem. Ela é raramente identificável, nasce nos gabinetes dos técnicos burocratas e vai-se impondo nas estruturas de poder. Essa imposição é facilitada pela falta de liderança e de visão daqueles que os chefiam uma vez que, inseguros da sua posição, preferem colocar-se na frente da manada e correr ao lado dela.
O rio da mediocridade normativa nasce aí.
A estátua de David é ofensiva? Corta-se a pila do sujeito, os eunucos até cantam melhor nas igrejas.
As aventuras de Tom Sawyer tem termos e contexto da época esclavagista? Reescrevam-se as passagens com Mark Twain doutrinado por uma inteligência artificial programada.
Se a origem do mundo de Courbet tem uma vagina demasiado feia depile-se a mesma e suavizem-se os seus traços, que a intimidade estilizada é por todos a mais desejada.
Se em qualquer obra escrita, pintada ou imaginada da Suméria aos Aztecas, do Egipto à China imperial, da Renascença aos Aborígenes, se retrata a escravatura, pedofilia, misoginia, a miséria, o poder, o corpo nu, o imperialismo, a religião, o sacrifício, o desejo, entre outros que, no fundo, retratem a história humana tal como ela sucedeu, com as nossas glórias e as nossas misérias, volte-se a refazer tudo à luz do nosso presente neutro. Sim, porque agora a arte ou até mesmo o pensamento que ambiciona ser arte, tem como principal filtro não ofender ou não magoar.
Não ofender ou não magoar os cães, os gatos, os paraplégicos, os invisuais, as plantas, as abelhas, os golfinhos, as pessoas com próteses, as mulheres que não podem ter filhos, os homens com alopecia, as crianças com cancro, os ford fiestas, os limoeiros, a tribo dos Maasai, os rockabilly’s ou os adoradores de lucifer. Estes e todos os outros.
A neutralidade é a ética dos fracos e medíocres. Respeitar o outro não deve obrigar a uma neutralidade coletivamente imposta.
Aqui chegados vem o contraciclo. Porque ele acaba sempre por chegar.
No lugar da neutralidade chegará o absoluto livre. Aquele que ofende, insulta e magoa apenas porque sim, apenas porque quer demonstrar que é forte, independente, irreverente e outros adjetivos terminados em ‘ente’.
O que de bom a ventania da neutralidade poderia ter trazido, mais atenção e respeito pelas minorias, pela diferença, maior consciência eco-social entre outros, será arrastada pela tentação de voltar a uma suposta tradição carregada de preconceitos.
Queremos ser livres, mas vamos balançando entre absolutos totalitários e em qualquer um destes apenas vamos encontrar a miséria humana.
Todos esquecem que equilíbrio é o verdadeiro lugar dos fortes e o totalitarismo o guarda-chuva que abriga todos os fracos.