A minha irmã estava para nascer, coisa que francamente não me dava jeito algum. De modo a combater aquela ideia parva dos meus pais, tentei portar-me bem, engraxar os sapatos e, até, dar beijos à vizinha chata. Também lhes disse que ela ia ser feia e chorona. Nada resultou.
Tornou-se urgente marcar território e eliminar antecipadamente a concorrência feroz que avançava na barriga da minha mãe. Fazer chichi pelos cantos não era opção, a casa era tão pequena que nem arestas tinha. Deitei por terra os modelos clássicos e roí toda a roupa que encontrei da “boa nova anunciada”, enfiei-lhe os dentes para resolver a minha fome de atenção e disfarçar o medo da novidade.
Esperançosos, os “hereges” entregaram a Amélie aos meus cuidados. Inicialmente, transferi os ciúmes para os trajes da boneca – a minha mãe costurava e eu cortava tudo. Um dia o drama acabou, sobrou-lhe um vestido com flores verdes e amarelas, que tem até hoje. A “poupée” de nome francês e carapinha africana tornou-se minha confidente, amiga e parceira de asneiras (era sempre o meu alibi quando beliscava as bochechas da “outra que veio sem ser convidada”). Passámos a ser o inseparável trio “SAM”: Sandra, Amélie e Marlene.
Estas doces memórias de infância despigmentaram-se ao ver o comentário cuspido nas redes sociais, alegadamente, pela seguidora de uma bloguer. “Deveria ter mais cuidado com o que deixa a sua Maria brincar, como influencer não devia passar a imagem de que é normal ela brincar com uma boneca negra (…)”. A Amélie chorou e eu também. Senti repulsa por este alguém, parecido com tantas mentes iluminadas que, infelizmente, existem e ousam o absurdo de se acharem melhores do que os outros. Só espero que não andem por aí a “evangelizar” crianças.
Tive bonecas pretas, amarelas e brancas, assim como as minhas filhas. Com muito orgulho, tenho família preta, leia-se, pessoas exatamente iguais a todas as outras. Penso neles, em quem se cruza com esta malta nas ruas da ignorância, e fico com um nó no peito. Enquanto a cor da pele, e outros predicados igualmente estúpidos, forem critério de hostilização, o mundo vai mal, muito mal.
(Artigo publicado na edição de 20 de agosto de 2020 do REGIÃO DE LEIRIA)