Havia fila de espera à porta de “Els 4 Gats”. Henrique pediu mesa para dois, mas Anna corrigiu:
– Para três. Carmen deve estar a chegar. É professora de história de arte. Vivemos juntas. Falei-lhe dos teus comentários sobre os meus trabalhos.
Henrique descobrira Anna na véspera, na Rambla de Santa Mónica, junto de um pequeno expositor de desenhos. Chegara ali cansado, depois de calcorrear todo o Paseo das Ramblas de Barcelona, fazendo honras ao espírito de São Jordi. De banca em banca, forçando a passagem, acumulara sacos de livros. Atravessara a zona dos pintores e retratistas, a Rambla de los Capuchinos, por entre a profusão de cavaletes com portefólios dos mais diversos motivos e engenhos, rodeados de mirones de ocasião.
Anna prendera-lhe o olhar. Inclinada sobre um caderno de esboços, o corpo oculto por uma túnica, a fisionomia de menina, emoldurada por caracóis negros, era a imagem da beleza serena que existe para ser admirada. Aproximou-se. Surpreendeu-se com a dimensão liliputiana dos desenhos, montados em cartolina com largos passe-partout.
Representavam músicos com os respetivos instrumentos e pareciam saídos de um álbum de Goya. Pousou os livros para observar o pormenor do desenho.
– Os seus desenhos estão entre Goya e Picasso. Anna, aceitou, com alguma reserva, falar com aquele desconhecido. Era estudante de arquitetura, mas queria exercitar e aperfeiçoar o desenho. Fazia séries únicas de desenhos sobre um tema, representando figuras humanas na rua: crianças a brincar, bailarinas, vagabundos. Francisco não escondeu o seu entusiasmo. Gostaria de ver outros trabalhos de Anna. Marcaram encontro para o dia seguinte. O local escolhido: uma homenagem ao Picasso jovem.
Anna trazia uma série com homens percorrendo a cidade em dia de chuva. Todos apresentavam um pormenor dissonante, um aspecto caricato, quase maldoso.
– O traço combina fragilidade e grotesco – disse Henrique. Foi Carmen quem lhe respondeu:
– Anna capta um lado disforme nas personagens. É um modo aparentemente infantil de nos provocar. Sim, vejo aqui Goya e Picasso. E Paula Rego, não acha?
Encomendaram uma garrafa de cavas e tábuas de ibéricos e de manchegos. Carmen e Henrique entabularam uma conversa interminável. Anna adormeceu, com a cabeça no ombro de Carmen.
– A Anna não é espanhola, pois não? – perguntou Henrique.
– Nenhuma de nós é espanhola. Eu sou catalã e a Anna é… adivinhe… arménia. Foi minha aluna na faculdade.
Levantou-se e beijou Anna na testa. – Tenho que a ir deitar, a minha menina má. Todos temos uma, não é verdade?
E apontando para os desenhos:
– Quer ficar com estas travessuras?
(texto publicado na edição de 13 de novembro de 2014)
Nacionalidade disse:
O João não é português, pois não?. Não, ele é alentejano, ou tripeiro, ou…