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Cidade imaginária: Flor de laranjeira (“rosa de azahares”)

Delia limitou-se a secundar as minhas propostas – um “risoto tuto mare”, antecedido de um “pulpo oliva en crostinis”.

João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com
João B. Serra, docente da ESAD.CR do Instituto Politécnico de Leiria serra.jb@gmail.com

Delia limitou-se a secundar as minhas propostas – um “risoto tuto mare”, antecedido de um “pulpo oliva en crostinis”. Aceitou porém colaborar na escolha do vinho, ao ver-me concentrado na lista dos “carmenères”. Sorriu, quando ergui o copo numa homenagem aos seus olhos cor de mar.

O almoço fora combinado através de Isabel Allende, que Delia em tempos secretariara em Santiago. Regressara, entretanto, a Valparaíso. Era voluntária nas duas casas de Neruda na região, a de Valparaíso e a da Isla Negra.

– Isabel informou-me que está a fazer um estudo sobre Allende… Explicitei o objecto da minha investigação: como é que a democracia chilena lidava com a memória de Allende e da revolução? A pesquisa incluía uma nota sobre relações entre Pablo Neruda e Salvador Allende, separados na morte por apenas duas semanas.

Em 1970, Delia frequentava a Faculdade e oferecera-se para colaborar com a Frente Popular. Neruda visitara a sede da Frente, em Santiago, para significar o apoio a Salvador Allende e a sua desistência de candidato oficial às presidenciais pelo Partido Comunista Chileno.

– Salvador apresentou alguns dos seus colaboradores a Pablo. Quando chegou a mim, citou uma passagem do “Canto General”, na parte em que se refere a Valparaíso:

Amo la luz violeta con que acudes
al marinero en la noche del mar,
y entonces eres – rosa de azahares –
luminosa y desnuda, fuego y niebla.

– Pablo olhou para mim com aqueles olhos de garoto inocente, fez-me uma festa no cabelo e disse: – Terminada esta tarefa – eleger Allende – terás um tempo para mim? – Fiquei fascinada.

Decidimos terminar a garrafa de “carmenère” na varanda do “Portofino”. Em frente, a baía de Valparaíso, debruada por uma avenida com edifícios que ainda respiram o passado colonial, a montanha magnificente que desce em anfiteatro até ao mar, organizada numa paisagem de socalcos, com a sua rede de ruas e escadas íngremes e elevadores, unindo aquele emaranhado improvável de casas trepadoras e coloridas das mil cores com que as sobras de tinta dos barcos vestiram cada uma das fachadas, portões, janelas, alpendres.

– Neruda e as mulheres! – exclamei. – Uma outra investigação!

– Eu sei que ele não inspira apreço nesse capítulo – retorquiu Delia. Mas foi na lembrança de Pablo que descobri forças para enfrentar a ditadura, a prisão, o exílio e o extermínio de parte da minha família.

A conversa tomara um caminho inesperado. Eu não queria escrutinar o encontro entre um homem e uma rapariga separados por quarenta anos e um abismo de mundo. O tema era porém irresistível. Ela pareceu adivinhar a minha perplexidade e hesitação. Fitou-me, pela primeira vez.

– Pablo dizia poemas para mim.

(texto publicado na edição de 18 de setembro de 2014)