Anoitecera já quando chegámos à “Pedra de Sal”, descendo do Morro da Conceição. Nas imediações, instalavam-se os vendedores de comidas e bebidas, com as suas caixas de esferovite, mesas cobertas de latas e garrafas, grelhadores.
Acolhemo-nos à proteção de Sandrinha, na esquina da Argemiro Bulcão com a João da Baiana. Sandrinha só vendia cerveja, mas sendo todos os outros vendedores seus sobrinhos, não havia nada que ela não pudesse intermediar. Encomendámos pastéis e churrasquinhos e escolhemos cachaça Seleta, entre uma braçada de garrafas que nos trouxe para amostra.
Combinara encontro com Rita, ao fim da tarde, junto à Fortaleza da Conceição. Ela fizera-se acompanhar por um casal de arquitetos portugueses que conhecera no hotel.
Com a chegada do grupo de samba, o largo começou a encher-se e o negócio de bebidas e comidas ganhou animação. Rita virou-se para os seus acompanhantes e incitou-os a irem dançar:
– Eu fico com o Tiago. Se ele não se importar…
Tirou da mala um pequeno bloco e começou a escrever numa letra compacta.
– Ajudas-me a reconstituir a visita?
Conhecera Rita no dia anterior, quando, por determinação da diretoria, a recebera no Museu. Ela pretendia reconstituir a viagem de Rafael Bordalo Pinheiro ao Rio, em Julho de 1899, na tentativa de vender a famosa jarra Beethoven. Procurava os cadernos de notas e desenhos usados pelo artista nas suas deslocações.
– Vou ler-te o que já escrevi, mas só os tópicos. Entrevista com Tiago, assessor de museografia do Museu de Arte. Visita ao Museu, recentemente inaugurado. História dos edifícios e da obra, integrada na requalificação da área portuária da cidade (projeto “porto maravilhoso”). Terraço do 6º piso: identificação das áreas envolventes. Morro da Conceição: único espaço sobrevivente da primeira ocupação portuguesa do Rio. Visita dia seguinte proposta por Tiago.
– Agora descrevo o que vi e fiz no Morro. E concluo: “Confronto com uma cidade diferente: o casario, as pessoas, o traçado urbano intimista, com ladeiras, travessas, becos, escadarias, um adro. Escala de espaço público comunitário, favorecido pela homogeneidade da construção, com uma identidade forte, pejada de memórias sólidas e concretas. Por quanto tempo resistirá ao avanço da cidade cosmopolita, intranquila, impessoal?”
– Fantástico! É um diário?
– Não. É um registo de viagens, encontros, leituras, conversas… Sigo o exemplo do meu pai, que era médico, e de um antigo namorado, historiador de Arte.
– Não escreves sobre ti? As tuas emoções?
– Nunca. Os meus segredos dão-se mal com a solidão da escrita. Este caderninho proteger-me-á do esquecimento, mas não de mim própria.
(texto publicado na edição de 16 de outubro de 2014)