Até 1985 o consenso geral era de que bebés de poucos meses não tinham capacidade de sentir dor como as crianças ou os adultos. E, embora esta noção pareça absurda e formada por superstições ou crenças populares sem bases científicas, a ideia de que os bebés não podiam sentir dor durante os primeiros anos de vida era, de facto, um dos resultados do progresso científico que se tinha vindo a observar na Psicologia experimental desde finais do século XIX.
Com a sua publicação de 1890, “The Principles of Psychology”, William James introduziu uma componente neurológica no domínio da psicologia, em que o sistema sensorial começou a ser visto como módulos especializados do sistema nervoso que transmitiam a regiões especificas do cérebro a informação captada pelos recetores periféricos que formam os próprios órgãos dos sentidos.
A noção de representações neurológicas do mundo ambiente mediadas pelos órgãos dos sentidos foi subsequentemente desenvolvida e definitivamente consolidada pelos estudos experimentais do behaviorismo no início do século XX que começaram a usar a técnica de EEG (eletroencefalografia) por Hans Berger em 1929. Mas é paradoxalmente o aumento dos conhecimentos sobre o funcionamento do sistema nervoso que leva à conclusão de que um sistema nervoso imaturo não tinha capacidade de representar dor.
A argumentação era de que embora os órgãos dos sentidos transmitissem para o cérebro informação neurológica sobre os estímulos detetados, não era possível organizar essa informação em representações coerentes, incluindo a sensação de dor que se pensava requerer uma representação sofisticada de relações entre as diferentes fontes de informação sensorial. Mas o estudo da sensação de dor em geral, e em bebés em particular, é complexo e tem muito mais nuances do que é possível e razoável discutir neste texto (Marchant, 2014).
Perguntar ao bebé?
O estudo dos órgãos dos sentidos e da forma como o sistema nervoso representa as diferentes dimensões do mundo ambiente foi uma das inovações da psicologia de meados do século XX – um trabalho pioneiro muito importante em que se investigaram os limiares de perceção dos diversos órgãos dos sentidos, em particular nos domínios da perceção auditiva, visual e táctil. Por exemplo, nos estudos de audição o objetivo podia ser determinar as intensidades mínimas necessárias para ouvir sons de diferentes frequências ou investigar as diferenças mínimas de frequência ou intensidade de sons que era possível detetar. O princípio fundamental de toda essa nova metodologia experimental era apresentar estímulos variáveis ao longo da dimensão que se pretendia estudar, pedindo, por exemplo, ao informante que ajustasse a intensidade de um som de determinada frequência até chegar à intensidade mínima necessária para o detetar. Repetindo o processo para sons com várias frequências obtinha-se finalmente uma curva que mostrava os limiares de perceção como função da frequência, à semelhança do que hoje se faz para obter um audiograma. São metodologias em princípio muito simples que permitiram estudar experimentalmente as limitações e sensibilidades dos diferentes órgãos dos sentidos e que se continuam a usar, embora com processos mais sofisticados de controle e analises estatísticas das respostas dos informantes.
E, em linha com os novos estudos experimentais dos fenómenos de perceção, levanta-se também a questão da necessidade de estudos objetivos da perceção sensorial durante os primeiros meses de vida, ao mesmo tempo que se considera impossível estudar bebés na fase inicial da vida porque o sistema nervoso ainda não está suficientemente desenvolvido para permitir respostas voluntarias e controladas.
Mas entre a gama de movimentos mais ou menos arbitrários e reflexivos, a capacidade de sucção controlada é vital para a sobrevivência do bebé e presente desde a nascença e em 1969 Einar Siqueland e Clement DeLucia (Siqueland & DeLucia, 1969) usaram pela primeira vez a técnica de “sucção de alta amplitude” (High-Amplitude Sucking, HAS) e com ela demonstraram a competência sensorial de bebés de 4 e 12 meses de idade.
Estes investigadores criaram um sistema em que a frequência de sucção medida nas chupetas controlava a luminosidade de uma imagem projetada num écran em frente do bebé e para um grupo de bebés aumentar a frequência de sucção tornava a imagem mais nítida, enquanto que para o outro grupo era preciso reduzir a frequência de sucção para melhorar a qualidade da imagem.
Em ambos os grupos, os bebés modificaram adequadamente os seus comportamentos de sucção espontânea para tornar a imagem mais clara, indicando assim pela primeira vez que bebés de 4 e 12 meses de idade sabiam usar informação visual e conseguiam até descobrir como usar o seu chupar na chupeta para influenciar a imagem.
HAS- Sucção de alta amplitude
A técnica de sucção de alta amplitude permite ao bebé usar a pressão de sucção para controlar a apresentação de estímulos. Se o bebé está calmo e confortável, é muito provável que descubra espontaneamente o que acontece alguma coisa quando chupa na chupeta ligada ao sistema de apresentação de estímulos. Logo que alguma coisa acontece umas duas ou três vezes quando o bebé aumenta a pressão de sucção, o bebé parece concluir que há uma relação entre a sucção e o que ouve ou vê e costuma então interessar-se por repetir muitas vezes a sucção de alta amplitude para ouvir ou ver o estímulo. Ao fim de alguns minutos o interesse diminui, a não ser que nessa altura se apresente um outro estímulo que o bebé perceba como novo e que lhe desperte nova curiosidade. É este princípio muito simples que se usa para estudar a perceção de diferentes sons da fala em bebés a partir dos dois ou três dias de idade.
Vamos ver um exemplo de como é possível usar a técnica de sucção de alta amplitude para investigar se bebés de dois meses de idade distinguem entre as vogais [i] e [u] que ouvem no seu ambiente.
Começa-se por medir a pressão de sucção típica que o bebé usa espontaneamente quando tem uma chupeta na boca. A chupeta está ligada a um sensor e a pressão com que o bebé chupa na chupeta regista-se durante 1 minuto. Ao fim desse tempo faz-se uma análise dos níveis de pressão observados e define-se um limiar de “alta pressão”, tipicamente o nível de pressão que foi ultrapassado durante 20% do tempo de observação. O limiar de alta pressão fica assim calibrado em relação ao comportamento espontâneo do bebé e tem por isso a probabilidade de ser ultrapassado espontaneamente durante 20% do tempo. A figura seguinte mostra os níveis de pressão com que um bebé chupou espontaneamente na chupeta durante 1 minuto (as minhas desculpas pela má qualidade desta minha figura de 1990). Como se vê, o bebé chupa repetidamente durante uns segundos, com pausas mais ou menos longas entre os períodos de sucção mais intensa e durante esse minuto registam-se simplesmente os níveis de pressão.
Com base na distribuição dos níveis de pressão de sucção observados durante a calibragem estabelece-se o limiar de alta-pressão. A partir de agora, regista-se o número de vezes que a pressão de sucção do bebé ultrapassa o limiar de alta-pressão. Quando o nível de pressão ultrapassa o limiar de alta-pressão, o bebé ouve uma vogal, [i] por exemplo.
Na variante mais simples deste processo, o bebé ouve repetidamente a mesma vogal enquanto a pressão de sucção estiver acima do limiar. O comportamento típico de um bebé é aumentar inicialmente a frequência de sucção de alta-pressão para ouvir a vogal, mas perde o interesse passados uns minutos e deixa de se esforçar, diminuindo assim a pressão de sucção e o número de vezes que ultrapassa o limiar.
Quando o número de sucções de alta-pressão diminui durante dois minutos consecutivos, acontece uma de duas coisas, consoante o bebé fizer parte do grupo experimental ou de controle. Se é do grupo experimental, passa então a ouvir uma nova vogal, [u] neste exemplo; se o bebé tiver sido sorteado como pertencendo ao grupo de controle, continua a ouvir a mesma vogal, [i].
A reação típica dos bebés no grupo experimental quando percebem a nova vogal como sendo diferente da que até então tinham estado a ouvir é aumentar de novo a frequência e pressão de sucção para ouvir a nova vogal, em contraste com a continuação da diminuição do interesse nos bebés do grupo de controle que continuam a ouvir o mesmo som.
É isso que se vê nos gráficos das figuras seguintes. No caso do [i]/[u], os bebés aumentam a frequência de sucção de alta-pressão depois de ouvirem a nova vogal (minutos “post-shift”)
enquanto que no grupo de controle a frequência continua a decrescer.
A diferença estatística entre os comportamentos do grupo experimental e de controle deste exemplo permite então concluir que os bebés de dois meses de idade distinguem entre as vogais [i] e [u].
A investigação da capacidade dos bebés de distinguirem entre diferentes sons usados na língua ambiente do bebé ou noutras línguas tem sido estudada intensivamente desde que o primeiro artigo sobre perceção de contrastes fonéticos em bebés foi publicado em 1971 (Eimas, Siqueland, Jusczyk, & Vigorito, 1971). E os resultados indicam que até os bebés de poucos dias têm capacidade de diferenciar detalhes fonéticos, mais ou menos populares nas línguas naturais.
Uma conclusão genérica no que diz respeito à capacidade de distinguir entre os diferentes sons usados pelas línguas naturais é de que o bebé no princípio da vida parece distinguir entre quaisquer dos sons que ocorrem nas línguas naturais. Os bebés japoneses não têm dificuldade em distinguir /r/ e /l/ ou contrastes entre sons de Zulu que mais tarde, quando aprenderem a dominar a língua materna, lhes passarão despercebidos. Costuma dizer-se que o bebé nasce com uma capacidade linguística universal e que “perde” essa capacidade à medida que vai aprendendo a língua materna. É uma posição simplista e incorreta que, se houver interesse, terei muito gosto em desenvolver ou discutir no fórum de perguntas e respostas associado a este online, mas por agora deixo só aqui o desafio.
Estudos de perceção sensorial em bebés (a continuar…)
A técnica de sucção de alta amplitude que acabamos de descrever é uma das que se usam para estudar a forma como bebés percebem o seu mundo ambiente. Para obter resultados fiáveis é preciso estudar grupos de bebés (um grupo de controle e um teste/experimental), o que requer muitas horas de trabalho e muitos participantes.
O estudo objetivo do comportamento dos bebés e da forma como se percebe o mundo durante os primeiros meses de vida é fascinante e usa uma variedade de técnicas sofisticadas que tenciono abordar numa próxima edição, se houver interesse. São técnicas de estudo que usam o comportamento voluntário do bebé, como a chamada “Head-turn technique” ou “Eye-tracking” (preferência visual), e outras que não requerem a participação ativa do bebé, como observações da dilatação das pupilas ou registos eletroencefalográficos (EEG), que registam a atividade no córtex cerebral e como é que essa atividade se altera dependendo dos estímulos que o bebé ouve.
Por agora ficamos por aqui. Até breve!
Eimas, P. D., Siqueland, E. R., Jusczyk, P., & Vigorito, J. (1971). Speech perception in infants. Science, 171(968), 303-306. Retrieved from PM:5538846
Marchant, A. (2014). ‘Neonates do not feel pain’: a critical review of the evidence. Bioscience Horizons: The International Journal of Student Research, 7, 9. doi:10.1093/biohorizons/hzu006
Siqueland, E. R., & DeLucia, C. A. (1969). Visual Reinforcement of Nonnutritive Sucking in Human Infants. Science, 165(3898), 1144-1146. doi:10.1126/science.165.3898.1144