O Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo (14a edição, 1973) define fala como “Ação de falar. Aquilo que se fala ou exprime por palavras. Voz. Alocução”. Fala é som com que membros de uma comunidade partilham informação, mas usar som para comunicação não é característica exclusiva dos humanos. O canto das aves, o ladrar, o miar ou os sons de alarme produzidos por macacos comunicam especificamente presença, domínio, submissão ou perigos iminentes. Mas apesar da sofisticação de alguns desses sistemas de comunicação e de relativamente grandes reportórios de sons, nenhuma das espécies não-humanas atinge a capacidade humana de falar uma língua, seja ela oral, visual (língua gestual) ou táctil (no caso de surdos-cegos).
Quais são então as características fundamentais da língua humana que a tornam tão diferente dos sistemas de comunicação das outras espécies? Como é que se produz a fala, como é que a ouvimos e interpretamos e como é que aprendemos a falar durante os nossos primeiros anos de vida?
Estes são alguns dos temas que tenho tido a sorte de estudar cientificamente como professor na Universidade de Estocolmo. São temas fascinantes que talvez possam interessar aos leitores do REGIÃO DE LEIRIA e por isso é com grande entusiasmo que me aventuro a lançar este projeto de reflexão sobre aspetos da comunicação falada que agora inicio. A ideia é contribuir mensalmente com textos, curtos e simples, que chamem a atenção para aspetos da comunicação falada que tenciono desenvolver online, com material de apoio e a possibilidade de discussões mais especializadas. E começamos assim:
“Falar é fácil!” – costuma dizer-se sobre quem faz promessas de projetos irrealistas – mas sem o enorme e constante treino que temos tido desde que nascemos, falar não seria, de facto, fácil. É uma expressão interessante que relaciona dois níveis básicos da língua falada – a produção dos próprios sons da fala e a relação entre o som das palavras e o que elas significam. Mas, nem a produção controlada e voluntária dos sons da fala é fácil, nem o significado das palavras que se pronunciam é automático ou evidente.
Não há um “órgão da fala” propriamente dito. Os sons da fala produzem-se usando órgãos dos aparelhos respiratório e digestivo que aprendemos a controlar durante os primeiros anos de vida. Vocalizações usam as cordas vocais, cuja função vital é proteger os pulmões. O som resulta do equilíbrio instável entre a pressão do ar nos pulmões e a tensão das cordas vocais. Não havendo constrições ao longo do trato vocal, o som é sempre uma vogal qualquer, mas pronunciar a vogal que se quer requer precisão e coordenação de movimentos da língua, mandíbula e lábios, e isso aprende-se com inúmeras horas de “treino” que começam já no berço. Mas como é que o bebé adquire a perícia de articular sons semelhantes aos que ouve na língua ambiente? Como é que o bebé ouve a fala da língua ambiente e descobre o significado de palavras já durante os primeiros anos de vida?
De facto, para o bebé não há inicialmente palavras na língua ambiente – nem faladas nem escritas, separadas por espaços ou sinais de pontuação. Há apenas a informação que é transmitida pelos cinco sentidos – como a perceção de sons, imagens, gostos, cheiros e contactos – e o que o bebé ouve são frases, praticamente sem pausas entre as palavras a não ser quando o falante se interrompe ou enche o peito de ar para continuar a falar. O bebé tem que descobrir que há sons da fala entre a enorme variedade de sons que ouve, mas como é que procede à descoberta de que certas sequências desses sons até formam palavras?
Interessante? Vamos então começar a estudar alguns dos aspetos da comunicação falada
Palavras…
A figura junta mostra uma representação da onda sonora que eu gerei ao dizer a frase “Não há espaço entre as palavras que está a ouvir.”
É verdade que não há espaços entre as palavras? Mas parece pausas de vez em quando ao longo da frase. Serão esses os espaços entre as palavras? Vamos ver! Clique aqui para ouvir o som desde o princípio da frase até à primeira pausa.
É uma palavra? E qual é o som entre a primeira e a segunda pausa?
Vamos experimentar a ouvir o que se diz entre cada uma dessas “pausas”.
Afinal parece que as “pausas” da onda sonora não correspondem a espaços entre palavras… De facto, essa “pausas” parecem ser interrupções de palavras e às vezes há até várias palavras entre “pausas” consecutivas…
Conclusão:
Não há realmente pausas ou espaços entre as palavras que ouvimos na frase. Identificamos as palavras apesar de elas aparecerem nos contínuos sonoros das frases que ouvimos.
Como é que aprendemos a extrair palavras dessas ondas sonoras?
Voltaremos mais tarde a este tema para tentar encontrar uma resposta.
Ouvindo ativamente…
Ignorando ruído e ouvindo silêncio?
No dia-a-dia é frequente ouvirmos ruídos à mistura som os sons da fala (alguém que tosse, uma porta a bater, uma cadeira que se arrasta, etc.). Esses ruídos sobrepõem-se ao som da fala que ouvimos, como neste exemplo.
Qual foi a parte da frase (que som ou sons) afetada pelo ruído?
A mesma frase, mas agora com silêncio onde havia o ruído.
Qual foi a parte da frase (que som ou sons) afetada pelo silêncio?
O som afetado foi o “n” de “Nazaré”.
Porque será que é mais fácil determinar a posição do silêncio do que a posição do ruído?
Antecipando o que vai ser dito…
Antecipar o que vai ser dito à medida que vamos ouvindo os sons de uma frase acontece vulgarmente, e sem se dar por isso, em situações naturais de comunicação. O próximo exemplo ilustra essa antecipação. A palavra chave que aparece no fim da frase “Vou dizer…” está inicialmente omitida, mas vai sendo revelada sucessivamente.
Clique nas apresentações sucessivas e preste atenção às palavras que vêm à mente à medida se vai ouvindo mais sons da palavra final.
Note como foi descobrindo palavras compatíveis com a palavra correta mesmo antes de ouvir a frase completa.
Ouvir com os olhos…
Esta demonstração é audiovisual. Ajuste o volume a um nível confortável e olhe para o modelo enquanto ela fala. O vídeo começa com uma calibragem audiovisual que consiste numa contagem decrescente para testar a imagem e um curto tom de teste do áudio.
Preste atenção à imagem e clique aqui para começar o vídeo.
Ouviu sílabas diferentes olhando ou não olhando para o modelo?
Se sim, integrou o que viu com o que ouviu e a informação visual superou a auditiva. Isso é natural porque em condições “normais” vemos a pessoa que está a falar e por isso usamos a informação visual que neste caso indica que é “ba” o que o modelo diz. Em condições normais o som que ouvimos é compatível com o que vemos e por isso quando se vê “ba” temos tendência para ouvir também “ba”.
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