Ainda me lembro, vagamente, da minha bisavó materna. Chamava-se Helena e morreu era eu menino de muito tenra idade. Não me recordo se alguma vez cantou para mim, nem de resto me recordo da sua voz. Visitava-a num quarto escuro lá de casa, ornamentado de santos, muitos santos, e algumas fotos de tios e primos.
Um gato aos pés da cama seria o principal motivo que me levava até à sua beira. A ela associo esse gato, mais um tareco na longa genealogia de gatos na família, que decidiu abandonar a casa para um terreno anexo no dia em que morreu a bisavó Helena.
Ali morreu seco poucos dias depois, numa cama que improvisou de palha de feijão, recusando-se a beber ou comer o que quer que fosse. Há gatos para quem a vida só faz sentido na companhia de alguém.
Lembro-me do som daquele miar como se ainda hoje ali estivesse. Aflito, asmático, estranhamente agudo, num decrescendo longo qual sinfonia romântica. Ele queria dizer alguma coisa. Assim se comentava lá por casa e se davam palavras àqueles miares. Mais tarde descobri que eram as pessoas que queriam dizer coisas, e punham na voz do gato os seus pensamentos. Hoje sabemos que o gato também queria mesmo partilhar sentimentos e afetos.
Guardei na minha memória esses sons, vindos da terra de amanho ao lado de minha casa, cuja expressividade e riqueza estimulavam palavras e ideias mil que depois cozinhávamos em família.
(texto publicado a 28 de fevereiro de 2013)