“Cântico negro” de José Régio é um poema de afirmação da individualidade rebelde. Mas também pode ser visto como espelho da incapacidade para abraçar causas comuns. Dependendo do ponto de vista, é simultaneamente um poema revolucionário e conformista. Muito português, portanto.
Hoje somos todos revolucionários. Manifestamos o nosso descontentamento na rua mas, discípulos de Régio, renegamos o sindicalismo, a filiação partidária. E de toda a sociedade se levantam vozes a exigir que o Governo oiça a rua. Aquilo que era património do discurso de esquerda é agora useiro e vezeiro em todos os quadrantes políticos. Mas é preciso ter consciência que o discurso de sacralização da rua é perigoso, sobretudo quando acompanhado pela diminuição do papel dos parceiros sociais e os partidos. António José Laranjeira, neste jornal, afirmou: “O Governo tem que entender que as manifestações da sociedade civil (e não as do PCP/CGTP) são sintomas de que algo vai mal”. Não poderia estar mais radicalmente contra.
As manifestações de 15/9 juntaram milhares de “eu’s” e, nesse sentido, foram excecionais. Já a manifestação de 29/9 revela um carácter mais permanente, uma capacidade de mobilização mais estruturada, juntando aqueles que afirmam com convicção: “Sim, eu vou por aí”. E essa atitude é muito mais subversiva. Daí haver tantas vozes que a queiram diminuir.
(texto publicado a 12 de outubro de 2012)