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Margarida Saraiva

presidente da Babel - Organização Cultural

O Barro e a Cidade: Um Museu Sem Paredes

Uma dupla de artistas em residência no projeto “ART, [HE]ART, [E]ART[H] – Reviving Ceramic Traditions” transformou em setembro o centro histórico da cidade de Alcobaça num museu sem paredes, no âmbito do Congresso Internacional de Cerâmica. A presidente da Babel – Organização Cultural, Margarida Saraiva, escreve sobre essa intervenção.

Foto: Rose Richards

A Cidade como Tela

No âmbito do Congresso da Academia Internacional de Cerâmica, os artistas Javier Tárrega e Inés Escaned propuseram uma intervenção intitulada “O Barro Esfrega o Barro”, que consiste em cobrir elementos da cidade com barro selvagem, recolhido nas imediações de Alcobaça. Esta ação desafia as convenções do que podemos considerar arte e questiona a natureza dos espaços urbanos, bem como da informação/publicidade que se espalha pela cidade. Somos convidados a refletir sobre o “jogo” da vida, da arte, da construção da cidade e da narrativa informativa, onde as fronteiras entre o público e o privado, o espaço informativo e o publicitário, se tornam cada vez mais nebulosas.

Foto: Rose Richards

A Obra e os Artistas

Trata-se de uma colaboração entre Tárrega e Escaned, que trabalham juntos desde 2020. Tárrega é arquiteto formado pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Alcalá de Henares, com experiência em paisagismo e urbanismo. Cansado da burocracia no desenvolvimento de projetos de espaço público, iniciou a sua pesquisa artística, expressando-se através da pintura, escultura e instalação. Escaned, engenheira ambiental, também estudou dança contemporânea, explorando a relação entre o corpo e outras disciplinas artísticas. Juntos, eles intervêm em espaços comuns através da ação direta, desenvolvendo projetos inspirados em contextos específicos.

Foto: Rose Richards

O Ser ou Não Ser Arte

A questão do “ser” ou “não ser” arte não é passível de consenso. Ao revestir caixotes do lixo, painéis publicitários e informativos, e placas indicativas de possíveis direções na cidade com barro, os artistas questionam a própria essência da arte. Será arte porque está exposta? Ou será arte porque se trata de uma transgressão do quotidiano? Ao transformar objetos utilitários em obras, os artistas desafiam a percepção tradicional e convidam o espectador a reavaliar o valor destes e de outros elementos urbanos que muitas vezes ignoramos.

Barro como Matéria Ecológica

O uso do barro, uma matéria que remete à terra, simboliza a ligação intrínseca entre o ser humano e o ambiente. Este barro, moldável e orgânico, sugere uma relação de pertença à terra e abre a possibilidade de transformação. A escolha de não utilizar vidrado sobre o barro, reforça o caráter ecológico da obra, promovendo uma estética que respeita a natureza, os recursos locais e a efemeridade. Assim, a obra propõe que a arte pode ser vivida e sentida no espaço que habitamos, tornando a cidade um organismo mais mutante, mais participativo e, logo, mais vivo.

Foto: Rose Richards

Espaço Público ou Privado

“O Barro Esfrega o Barro” coloca em xeque a dicotomia entre o espaço público e o privado. Ao invadir o espaço urbano e transformar certos elementos em arte, os artistas abrem um diálogo sobre quem detém o poder de definir o que é apropriado ou não ao nosso redor, quem pode e quem não pode intervir, até que ponto a intervenção é permitida ou proibida, quem decide e com que critérios…

Quando as cidades, tradicionalmente vistas como espaços de consumo, se transformam por intervenção artística em tela, galerias de arte ao ar livre, ou em museus sem paredes, criamos um espaço de reflexão coletiva, onde a cidade pode ser o que quisermos que seja, mesmo que apenas por um dia.

E se por um Dia Apenas…

As perguntas que surgem são provocadoras:  

E se, por um dia apenas, as cidades não tivessem indicações e pudéssemos descobri-las sem antecipação?  

E se os cidadãos pudessem pintar as cidades nas cores que gostam?  

E se os monumentos, em vez de serem meros marcos históricos, fossem contadores de histórias vivas e contemporâneas? O que revelariam sobre nós e sobre as nossas comunidades?

Estas questões obrigam-nos a imaginar um mundo onde a arte e a vida quotidiana se entrelaçam ao ponto de não poderem distinguir-se.

Foto: Rose Richards

A Cidade como Museu Sem Paredes

Sonhar com cidades como museus sem paredes implica imaginar um espaço onde a expressão individual e a coletividade se encontram, um espaço onde o histórico e o contemporâneo convivem, um espaço onde cada elemento que se insere no espaço público se concebe como uma parte pequena, mas essencial, de uma construção coletiva maior: a cidade, lugar de civilização, arte e cultura. Cada elemento da cidade poderia ser uma obra de arte, refletindo a diversidade de vozes e histórias que compõem a sociedade. Esta visão não é apenas um desejo estético, mas um apelo à consciência social e à participação ativa na construção do nosso espaço, que pertence, pelo menos utopicamente, mais ao cidadão do que às empresas que invadem o nosso campo visual com apelos ao consumo de produtos que talvez não nos interessem de fato.

Ao desafiar as definições de arte e espaço, Tárrega e Escaned convidam-nos a uma reflexão profunda sobre o nosso papel como cidadãos, criadores de significado e manipuladores de informação. Os artistas instigam-nos a imaginar uma realidade onde todos podemos ser co-autores da narrativa urbana. Na dança entre barro e terra, espaço público e privado, arte e quotidiano, informação e desinformação, encontramos a possibilidade de um futuro mais dinâmico, inclusivo e participativo.

Assim, este projeto não apenas reinventa a percepção do espaço urbano, mas também propõe um diálogo essencial sobre a ecologia da informação e a estética da cidade. Ao intervir na paisagem urbana com barro, os artistas trazem à tona questões sobre a natureza efémera da arte e a sua capacidade de transformar percepções. Este gesto de apagamento e recriação convida-nos a reconsiderar o que valorizamos ao nosso redor e a importância da participação comunitária na definição do espaço que habitamos.

Que possamos, então, sonhar com cidades que não são apenas habitadas, mas vividas como verdadeiras obras de arte participativas, onde cada cidadão é não só um espectador, mas um agente ativo na construção de um espaço coletivo que reflete a diversidade e a riqueza das nossas histórias. Neste sentido, a prática artística de Tárrega e Escaned serve de catalisador para uma nova forma de ver e viver a cidade, promovendo uma consciência crítica que nos impele a agir e a intervir. A arte, assim, não se limita a ser uma expressão estética, mas torna-se um meio vital de relação, reflexão e transformação social.