Dado que, por esta altura, o mundo inteiro está familiarizado com gráficos, e com as linhas que neles correm, pensemos numa recta horizontal, paralela ao eixo das abcissas; chamemos-lhe nível não pandémico de ansiedade. Movamo-la um pouco para cima; chamemos-lhe nível pandémico de ansiedade. É assim que nos encontramos. O nosso nível normal de ansiedade subiu alguns degraus, e é normal. A ansiedade é uma resposta à ameaça. Somos ameaçados por uma criatura nova, que, por indetectável ao olhar, não se pode esmagar com um dedo, como certas pragas bíblicas. Mas não temos apenas isso. Temos também uma interrupção acidental e violenta do quotidiano, com uma paragem instantânea da vida social, um recolhimento solitário, a casa como eremitério. Além disso, vivemos, pela primeira vez, em quarenta e cinco anos e, pela segunda vez, em mais de sessenta, a sempre desconfortável realidade de um estado com poderes reforçados no seu monopólio de coerção, frustrando liberdades individuais e direitos civis. Se estes não são tempos para que a ansiedade se preste a criatividades, resta-nos, então, imaginar uma peste passada em mil novecentos e oitenta e quatro, e aí, tenho a certeza, o mais temerário dos homens tremerá, não só doente, mas também com uma bota a esmagar-lhe a cara. São tempos de ansiedade, não há dúvida.
No entanto, se a doença não é boa conselheira, também não é o medo, que é outra forma de doença. Por norma, a procura de clareza aparece-me como tranquilizadora e sã. Isto pode ser particularmente dramático numa época em que tudo é agudo e trémulo, mas nem por isso é um exercício que deva ser abandonado. Reconhecer o desconhecido e o incerto como tais, constitui, em si, uma forma de clareza. A clareza, porém, e ainda que o romanceássemos, não surge como maçã caída ou como exclamação arquimediana, mas aparece com a duração do que acontece, com pequenos passos e olhares em redor. Em tempos exigentes, cresce, naturalmente, o número de vigilantes e juízes, com sentenças óbvias e planos evidentes. Em tempos exigentes, o pensamento tende a polarizar-se e a existir em dicotomias: totalmente a favor ou totalmente contra; os velhos e os novos; a vida ou a economia; a vida ou a liberdade. A existência como assalto à mão armada. Mas, se alguém já perdeu algum tempo a contemplar a espessura de um acórdão judicial, facilmente intuirá que as decisões não podem ser fáceis ou imediatas, sem que sejam também erradas ou totais. Haverá sempre alguém a alertar: ainda não é tempo de pensar ou fazer isso, mas estar concentrado numa coisa é estar distraído de tudo o resto, e deste resto também se vive e também se morre. No humano, o acto de viver é bastante mais complexo do que aquilo que afirmam cada uma das suas especializações. A secura das dicotomias faz esquecer que os valores não existem isolados, mas em equilíbrios, e que, no ocidente, são os princípios, e não os fins, que justificam os meios. Do choque ao cansaço, até ao surgimento de uma vacina, tudo será demorado e hesitante. Porém, haverá perguntas que não podem encontrar o alheamento como resposta, porque é o tempo que transforma a excepção em hábito. Talvez nunca tenha sido tão necessário o exercício de clarificar. Duvidar das respostas absolutas, dos textos em maiúsculas, e dos profetas pós-facto é também uma forma de clareza. E a clareza, por pouco que seja, pelo menos para mim, é tranquilizadora, pois não deve haver prescrições inelutáveis para o que não se conhece.
(Artigo publicado na edição de 23 de abril de 2020 do REGIÃO DE LEIRIA)