Hoje, não seria possível a Walt Whitman passear na rua, sem que, sobre si, se abatessem olhares de censura e insultos à sua mãe. E com toda a razão. Lá para o final de “Canção de Mim Mesmo”, o poeta americano proclama, entre parêntesis, é certo, mas um tanto fanfarrão: Eu sou imenso, eu contenho multidões. Noutra altura qualquer, isso seria até bastante louvável, como traço de um carácter equívoco e como resultado celebrável de uma personalidade inquieta e estimulante. Mas, hoje, não. Hoje, sabe-se que não se pode andar por aí, contendo multidões. Não se pode andar por aí aos magotes. Também não é altura para se ser imenso, lamento; isso ocupa muito espaço. Numa altura de racionamento da utilização de praias e de transportes públicos, como é que se pode andar por aí, sendo imenso? Nada disto é aceitável do ponto de vista sanitário e uma ousadia desse calibre merece reprovação imediata, senão mesmo outro tipo de condenação, mais severa. Essa gente imensa e que contém multidões é quase certo que não está a cumprir as regras de distanciamento social recomendadas. Já para não falar de que não se conhece qualquer dado científico sobre que precauções tomar, relativamente ao distanciamento de identidades. Imagine-se que, na multidão de Walt Whitmans, existe um, mais irresponsavelmente insalubre, que não cumpre normas de etiqueta respiratória. Seria quase certo que, existindo todos num único corpo exíguo, os restantes Walt Whitmans fossem imediatamente contaminados. Imagine-se que morreria logo aquele Walt Whitman que iria escrever uma nova obra maior. Diria que temos uma obrigação moral, enquanto sociedade, de salvar os poetas de si mesmos. É necessário defender o mundo destas ideias poéticas, que são incrivelmente perigosas em períodos de provação.
Não julguem que estou a exagerar. A gravidade do problema é real e pode estar a ser subestimada. Poderíamos estar a falar de uma pessoa que contivesse uma multidão. Isso, enfim, até certo ponto, apesar de duvidoso, poderia ser admissível. Mas estamos a falar de uma pessoa que contém, não uma, mas várias multidões. Só um Walt Whitman esgotaria a lotação controlada de qualquer supermercado, impedindo os seus concidadãos de obter bens essenciais. Ocupariam o espaço comercial, as filas de espera e o estacionamento. Quer dizer, estive eu em casa para que ande por aí um Walt Whitman, a colocar todo o meu esforço em causa? Não pode ser, há limites.
Algumas pessoas, mais relaxadas, poderão contra-argumentar que Walt Whitman está morto e que não consta que fosse português. Outros poderão dizer que, em Portugal, o mais próximo de um problema semelhante chamar-se-ia Fernando Pessoa; e que também ele está morto, e ainda que, do que conhecemos, de si e da sua multidão, o mais provável seria que, com ou sem pandemia, já estivessem todos recolhidos, cumprindo, sem qualquer imposição, o distanciamento recomendado, por simples apreço pela misantropia. Mas estas justificações são irresponsáveis: nunca se está suficientemente a salvo de pessoas imensas e nem sempre é possível saber quem contém multidões. No limite, são elas próprias um vírus. Gente que é imensa e que contém multidões não pode andar pela rua; é por um bem maior. Gente que é imensa e que contém multidões deve permanecer no seu domicílio, porque, como se diz, e bem, só se estraga uma casa. Pela sua saúde e pela de todos, não seja imenso, não contenha multidões. Não seja Walt Whitman.
(Artigo publicado na edição de 28 de maio de 2020 do REGIÃO DE LEIRIA)