Na década de 1970, slalom não era um dos desportos mais populares em Portugal. Descer de skis uma encosta coberta de neve era uma atividade exótica que se via na televisão ou em revistas e em Leiria – onde a neve quase só era conhecida pelos versos do poeta, canções de Natal ou a farinha e o algodão dos presépios – poucos eram os que tinham tido a experiência de mexer em neve e muito menos a possibilidade de esquiar.
Eu, por exemplo, só tive o batismo de neve no norte de Espanha e graças à tradicional excursão ao país vizinho que os finalistas do Liceu Nacional de Leiria costumavam organizar. A neve era pouca mas deu para brincar mesmo sem roupas adequadas para a ocasião, e assim, mesmo frio e molhado, se despertou o meu interesse por ski. Deslizar sobre a neve com um par de skis era um desafio excitante que rapidamente se transformou numa ideia fixa, reforçada até por um artigo sobre a tecnologia dos skis modernos que a revista francesa de ciência popular Science et Vie acabava de publicar. Os skis tinham evoluído, e em vez de simples tábuas compridas a que se prendiam umas botas, passaram a ser peças de tecnologia avançada com estratos de materiais elásticos concebidos para descidas velozes, controladas pela perícia, flexibilidade e precisão do esquiador! Tinha que experimentar!
Por coincidência, emergiu nessa altura na rua Dr. Magalhães Pessoa, onde eu morava, um grupo de jovens também interessados por ski. Construí então, com mais entusiasmo do que conhecimentos, um “trenó” de madeira que levei comigo para uma das primeiras viagens que íamos fazer até à neve. Mas o aparelho recusou-se a deslizar! Eu tinha revestido a base do trenó com um oleado que se provou ser um excelente antiderrapante. Porém, desistir não era opção e pouco depois tive a oportunidade de ir “esquiar” na Serra da Estrela, aproveitando uma boleia do meu amigo Victor, vizinho e entusiasta de ski.
Com uns skis de madeira e umas botas de cabedal (modelo pré-histórico) alugados na Guarda, pusemo-nos a caminho da Torre. Nessa altura a “pista” tinha uma centena de metros e havia um “teleski” feito com umas cordas penduradas do cabo que rebocava até ao topo da pista. Sem as molas de amortecimento dos teleskis atuais, arrancava-se com um esticão, mas depois de meia dúzia de trambolhões lá consegui agarrar-me à corda até chegar ao topo da pista e ter que enfrentar o momento em que ia começar a transformar em movimento a energia potencial com que o teleski me tinha carregado. Por sorte, o declive da pista era muito modesto e eu, animado pela ousadia juvenil, deixei-me deslizar para ver o que aconteceria. Descobri rapidamente que os skis e a montanha tinham vontades próprias e que dificilmente se deixavam persuadir por um jovem principiante. E encaminhado pelas forças da natureza, acabei por ir fazer companhia a um grupo de turistas que se tinha instalado a comer a merenda no meio da pista. Numa estância de ski, este incidente teria levado à expulsão tanto do esquiador como dos turistas, mas dessa vez ninguém se magoou e passado o ataque de riso lá nos conseguimos desenlear uns dos outros. Não desanimei apesar dos trambolhões, do equipamento antiquado e do escaldão que apanhei sem proteção solar a 2000 m de altitude e passei a integrar-me no grupo de “esquiadores famosos” lá da rua. E para que não houvesse dúvidas sobre o meu empenho, comprei ao meu amigo Victor um par de skis de competição, no final de mais uma desastrosa aventura em Andorra.
Dez anos mais tarde, já em Estocolmo, esses skis viriam a impressionar a minha noiva sueca, instrutora de ski:
– Fazes ski?
– Não muito bem.
Que homem! Deve ser um excelente esquiador e é tão modesto!
(Continua…)
(Artigo publicado na edição de 2 de julho de 2020 do REGIÃO DE LEIRIA)